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Instituto Civitas

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O CUPIM DA REPÚBLICA

O CUPIM DA REPÚBLICA E  NOJO À DITADURA
Por Gerson Gomes

A mais recente Constituição brasileira (sétima de nossa história) completa 35 anos em 2023. A aplaudida frase de Ulysses Guimarães, “Temos ódio à ditadura! Ódio e nojo!”, proferida no histórico discurso de sua promulgação, em 1988, foi paulatinamente silenciada e deixada de lado pelos que apenas encenam uma cínica e ambígua defesa da democracia.

Gosto muito da palavra “análogo”, pois este eclético substantivo nos oferece paralelismos muito úteis. Na luta contra a exploração da mão-de-obra, por exemplo, definimos o trabalho como “análogo ao escravo”, quando seres humanos estão submetidos a jornadas intensas e em condições degradantes. Da mesma forma, não tenho como evitar a pergunta: “Se a repulsa que temos diante da ignomínia do trabalho análogo à escravidão fosse a mesma diante do autoritarismo análogo à ditadura, estaríamos submetidos à juristocracia de nossos dias?”

O resgate do discurso do Dr. Ulysses, um ardente crítico dos governos militares (1964 a 1985), é de suma importância para alertar, especialmente os mais jovens, sobre as reais ameaças à democracia: “Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério”. Teríamos inadvertidamente retomado o caminho maldito?

A liberdade de expressão, e da própria mídia jornalística, foram por diversas vezes “garroteadas” nos últimos anos. Centenas de patriotas tiveram seu primeiro contato com o arbítrio que “manda para a cadeia”, enquanto a lei maior se viu “rasgada”. A prisão inconstitucional de um parlamentar e a censura imposta às redes sociais de dezenas de mandatários, das três esferas legislativas, não seriam a hodierna forma de “trancar as portas do Parlamento”?

A omissão diante do crescimento do poder autoritário é uma temerária decisão. Quando nem mesmo líderes religiosos e indígenas são poupados da perseguição política, enquanto jornalistas e comediantes são empurrados para o “exílio”, deveríamos todos levantar nossas cabeças, afinal, para o cabal cumprimento das palavras do Dr. Ulysses, ao menos que se saiba, faltaria apenas o “mandar para o cemitério”.

Onde foi tomado o desvio que nos reconduz ao estado de exceção? O “tropeço inicial” teria ocorrido por ocasião da “teratológica” decisão de 2018, quando a revista Crusoé foi impedida de circular, trazendo na capa: “O AMIGO DO AMIGO DO MEU PAI”, em referência ao Ministro Dias Toffoli, então presidente do STF. Toffoli determina a abertura de um inquérito, à revelia do Ministério Público, escolhendo (sem sorteio) o Ministro Alexandre de Moraes para a relatoria. Estava aberta a caixa de pandora tupiniquim!

O apelidado “Inquérito das Fake News” ganhou volume como um tornado, tragando todos que ousaram criticar a corte, ou os arbítrios de seu ministro relator. Jornalistas, políticos, influenciadores digitais, empresários, religiosos, comediantes, intelectuais conservadores, produtoras de conteúdo e, até mesmo, um canal de TV com milhões de telespectadores, todos alcançados pela violência dos ventos ditatoriais.   

Neste ponto, cabe a ressalva de uma importante voz dissonante no STF: o ministro Marco Aurélio Mello, o qual acusou a não observância do sistema democrático e criticou o sigilo imposto ao processo: “É um inquérito do fim do mundo, sem limites. Estamos diante de uma afronta ao sistema acusátorio do Brasil. Magistrados não devem instaurar [inquéritos] sem prévia percepção dos órgãos de execução penal”. Marco Aurélio fez, ainda, duras críticas à “exótica” situação onde um dos integrantes da suprema corte acumulava os papeis de acusador, vítima e juiz: “Ministros devem se manter distantes da coleta de provas e formulação da acusação”.

Feita a ressalva, voltemos ao oportuno discurso de Ulysses Guimarães: “Amaldiçoamos a tirania aonde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina.” É lícito supor que nosso brilhante orador não vislumbrava, em 05 de outubro de 1988, os efeitos da derrocada soviética sobre o entorno geográfico do Brasil. O “Dr Diretas”, como ficou conhecido, fazia referência aos regimes autoritários de direita, que ascenderam ao poder no auge da guerra fria.

Por mais experiente que fosse, não poderia prever a queda do muro de Berlim no ano seguinte e, sobretudo, que Lula se juntaria a Fidel para a criação do Foro de São Paulo, já em 1990, patrocinando a nova safra de ditadores, agora de esquerda. Ortega, Chavez e Morales apenas reproduziriam, em seus países, a experiência socialista que ainda subjuga cubanos, na mais longeva ditadura do continente.

Ulysses pode ter escorregado levemente na análise geopolítica, mas o sagaz advogado foi assustadoramente profético no âmbito nacional: “A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune, toma [bebe] nas mãos de demagogos, que a pretexto de salvá-la a tiranizam. Não roubar, não deixar roubar, por na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública.”   
 
Sua menção ao cupim foi irretocável! Praga espalhada no campo e na cidade, assim como a nefasta corrupção, não limita seu alcance a nenhuma classe social, ou grupo específico. Agem, ambos, no interior das estruturas, das casas e das almas, corroendo os cernes e mantendo intactas, por algum tempo, as externas aparências.

A incômoda comparação  joga  luz sobre o processo ocorrido nos últimos anos no Brasil e direciona nossos olhares para o STF. Ao rever o entendimento sobre o momento adequado à execução da prisão, com a óbvia intenção de libertar Lula, a mais alta corte do país estabeleceu nova jurisprudência sobre o “trânsito em julgado” e cumpriu, com espantosa precisão, cada detalhe descrito pelo renomado constituinte. Estava, assim, oficializada uma ultrajante brecha à impunidade! A sonhada prescrição das penas estaria disponível para todos os criminosos, fossem quem fossem, desde que pudessem desembolsar os valores exigidos por caríssimos escritórios de advocacia.

A desfaçatez dos demagogos, lamentavelmente, não parou nesse ponto. Poucos meses depois da controversa decisão, o “primeiro mandamento da moral pública” seria novamente desrespeitado. Luiz Inácio, já liberto da prisão, seria adicionalmente “descondenado”, anulando-se, de forma inconseqüente, todo o trabalho feito por três instâncias da Justiça Federal.

De um grave problema jurídico e moral, acarretado para todo o sistema penal brasileiro, o STF passou ao campo político, gerando uma grave crise no processo eleitoral. Ao “ressuscitar” Lula, a suprema corte trouxe à reboque dezenas de condenados em liberdade, temerariamente reincorporados à administração pública.

Conhecidos apenados por corrupção, lavagem de dinheiro, improbidade administrativa, e outros crimes, foram reconduzidos ao cenário político-partidário, em total afronta aos milhões de brasileiros que pacificamente tomaram as ruas desde 2013.  A vigorosa mensagem do discurso que nos empenhamos por resgatar, proferido vinte e cinco anos antes daquelas gigantescas manifestações populares,  novamente seria desprezada: A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar!”

A partir da manobra espúria no ápice da Justiça, a intimidação judicial foi eleita como a principal arma de contenção da insatisfação popular, que aumentaria no contexto da campanha eleitoral de 2022. Multas e censuras se avolumaram na cruzada do TSE de combate à “disseminação de fake news”, ao passo que a perseguição se intensificou contra todos que, segundo particular interpretação do tribunal, promoviam “atos antidemocráticos”. O “cupim da República” parecia triunfar, enquanto “demagogos, a pretexto de salvá-la a tiranizavam”.

Muitos analistas políticos no exterior, bem como ativistas dos direitos humanos, entendem que o Brasil não teve uma simples mudança de governo em 2023, mas uma verdadeira mudança de regime. Em apenas uma semana, a nova gestão recepcionaria 1.390 presos políticos, em uma clara ação de perfídia, que suplantou qualquer dos períodos classificados como ditatoriais na história brasileira.

O terceiro governo Lula foi concebido na expectativa de que uma coligação entre o Judiciário e o Executivo proporcionaria a estabilidade política que faltou a Bolsonaro para governar. A imperiosa necessidade de cooptação do Legislativo, marca registrada das administrações petistas no “mensalão” e “petrolão”, ressurgiria, antes mesmo da posse, com inúmeros ministérios anunciados e distribuídos entre os partidos. A derrubada do teto de gastos no orçamento, bem como a inobservância da Lei das Estatais, foram asseguradas pela arbitragem amiga e “civilizada” do STF.

Tudo corria conforme planejado, no entanto, para o estabelecimento incontestável da “pax petista” restava apenas um incômodo obstáculo: a resiliência inexplicável de “bolsonaristas”, por todas as unidades da federação, que mantinham vigílias de protestos pacíficos à frente dos quartéis, mesmo diante do “silêncio eloquente” do Presidente e, sobretudo, do terrorismo judicial imposto às lideranças conservadoras.

Neutralizados com multas, ameaças de não diplomação, ou mesmo de futuras cassações, os legítimos representantes políticos dos manifestantes, que poderiam conduzi-los à reivindicações tangíveis e importantes à futura oposição, foram convenientemente apartados dos “golpistas”, assim estigmatizados com o infame apoio do mainstream jornalístico.    

Teria a “insurgência” do 08 de janeiro caído no colo do governo, por puro golpe de sorte? Há indícios consistentes que apontam para o evento como a solução buscada e encontrada por importantes autoridades. Está lançado, portanto, o desafio diante da CPMI: trazer a verdade à tona.

A investigação no âmbito do Congresso Nacional deverá aclarar os fatos com maior equilíbrio e transparência, indicando o caminho de retorno à sensatez que promova a individualização dos crimes praticados. Munidos de instrumentos legais, os parlamentares estabelecerão responsabilidades, negligências e, até mesmo, um possível ardil político que tenha se beneficiado de uma típica operação de “falsa bandeira”.

Todos sabem que uma CPMI dessa magnitude carrega a capacidade intrínseca de ignição daquela mesma chama que levou milhões de patriotas às ruas nas “Diretas Já”, no impedimento de Collor e, sobretudo, no afastamento de Dilma Roussef. Não à toa, sua instalação foi retardada ao máximo pelo governo.

A narrativa criada ao redor da tentativa de um “golpe de estado sem armas” não será sustentada por muito tempo. Se a atabalhoada imitação da invasão ao Capitólio visava à exploração política de um pretenso “atentado à democracia”, o intento vai aos poucos erodindo. As “excepcionalidades” admitidas pelo STF, no gerenciamento inconstitucional da crise, também serão questionadas, em seu devido tempo.

Se a Constituição Cidadã tem sido eclipsada pelo “inquérito perpétuo”, é imperativo nosso retorno às alvissareiras palavras do Presidente da Assembleia Nacional Constituinte: “A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante à inércia, ou ao antagonismo do Estado”. Não é hora de desistir!

Na sustentação de seus argumentos, Ulysses evocou alguns épicos feitos da História do Brasil. Que suas belas palavras, abaixo reproduzidas, voltem a ecoar e servir de emulação para a retomada da esperança em nosso Brasil!

“O Estado era Tordesilhas. Rebelada, a sociedade empurrou as fronteiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do mundo.

O Estado, encarnado na metrópole, resignara-se ante à invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade territorial com a insurreição nativa de Tabocas e Guararapes, sob a liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira, que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: “Desobedecer a El Rei para servir El Rei”.

O Estado capitulou na entrega do Acre. A sociedade o retomou com as foices, os machados e os punhos de Plácido de Castro e seus seringueiros.

O Estado prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilella, pela anistia, libertou e repatriou.

A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar!” 

* A íntegra do discurso do presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Dr. Ulysses Guimarães, pode ser lida e ouvida, no site:
https://www.camara.leg.br/radio/programas/277285-integra-do-discurso-presidente-da-assembleia-nacional-constituinte-dr-ulysses-guimaraes-10-23/

7 thoughts on “O CUPIM DA REPÚBLICA

  1. Excelente artigo, que certamente fara parte deste periodo nefasto, porem historico, da nossa Nacao. Parabens Gerson Gomes.

  2. Muito bem pontuado! Os cupins da República devem ser combatidos. Somente o perfeito funcionamento das instituições é que garante a democracia.

  3. Perfeito! Nada teremos à comemorar se o STF continuar rasgando nossa Carta Magna e o Concresso continuar calado diante das descabidas interferências nos poderes….

  4. O cupinzeiro tem corroído a estrutura composta da nobre madeira de pau-brasil! E nem sabem disso pois só agem em nome da gula atual. Mal sabem da indigestão que poderá advir de suas próprias entranhas degustativas. E quando vier, dirão que tudo é pandemia!

  5. A Constituição de 1988 só prevê o cuprimento da pena após o fim dos recursos e não o contrário, além do mais, ficou provado pela ‘Vaza Jato’ que houve uso político dos inquéritos contra Lula para catapultar politicamente um juíz e um promotor que atuaram em conluio. Sua libertação corrigiu um erro cometido por um Judiciário encurralado por forças que viam na prisão de Lula a única forma de voltarem ao poder. Não foi o PT mas as trapalhadas de quem deveria investigar que possibilitaram a impunidade. Juízes e promotores que cometem crimes em nome da Justiça são bandidos mais perigosos do que aqueles que julgam já que exercem seus cargos em nome do Estado.

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