𝐁𝐑𝐀𝐒𝐈𝐋: 𝐁𝐔𝐍𝐃𝐀𝐒, 𝐁𝐀𝐑𝐀𝐓𝐀𝐒 𝐄 𝐁𝐎𝐋𝐄𝐓𝐎𝐒 – Por Guilherme Azevedo
O Brasil é um país de contrastes. Da festa ao caos, da euforia ao desalento, da sensualidade ao desespero; se fosse um personagem de novela, seria aquele tipo que a gente torce para dar certo, mas que insiste em tropeçar nos próprios pés. Um país cheio de cor, ritmo e riqueza natural, mas que vive enredado em suas contradições. Três palavras, aparentemente desconectadas, ajudam a ilustrar essa montanha-russa tropical: bundas, baratas e boletos. Três elementos que, cada um a seu modo, dizem muito sobre quem somos e por que seguimos tropeçando na própria história.
Do jejum à luxúria
O termo Carnaval vem do latim carnis levale, que significa “retirar a carne”, expressão que simboliza o jejum que deve ser feito durante a Quaresma (também do latim, quadragésima dies), período que antecede a Páscoa cristã. No entanto, o que começou como uma celebração religiosa virou uma catarse coletiva onde tudo é permitido. Uma das primeiras manifestações carnavalescas chegou por aqui com os portugueses, conhecida como “entrudo”, era uma brincadeira popular que se espalhava pelas ruas das cidades do Rio de Janeiro. Logo se misturou com os batuques e as danças africanas e se transformou na festa da carne — no sentido mais literal possível. O simbolismo religioso ficou para trás, e no lugar do jejum, ficou a bebedeira. No lugar da introspecção, ficou a liberdade desenfreada.
Hoje, o Brasil exporta Carnaval como exporta soja: aos montes. Milhares de turistas chegam todos os anos para experimentar a festa da luxúria, enquanto milhões de brasileiros, mesmo sem dinheiro, se jogam nos blocos para esquecer, pelo menos por alguns dias, os boletos atrasados e as baratas que insistem em dividir o espaço com eles em suas casas. O Carnaval brasileiro tornou-se uma marca, uma vitrine internacional de corpos seminus e fantasias exuberantes. Seus desfiles vendem pacotes turísticos e movimentam bilhões. E, convenhamos, tem algo mais brasileiro do que transformar miséria em espetáculo? Durante esses dias de folia, o Brasil parece um país feliz, rico, democrático. Mas quando os confetes tocam o chão e o som das baterias se apaga, voltamos à nossa rotina. E aí vem a ressaca, não apenas a alcoólica, mas a moral: percebemos que a festa acabou, mas os problemas continuam.
O termômetro de um sistema falido
Se o Carnaval é o brilho que distrai, as baratas são a sujeira que insistimos em ignorar. Elas estão por toda parte, rastejando pelos esgotos das grandes cidades, infestando barracos em comunidades, transitando entre o descaso e a corrupção. São um sintoma. Onde há baratas, há lixo, há descuido, há pobreza. Quem nunca viu uma barata correndo pelo chão de um boteco ou passeando despreocupada pelo banheiro da casa de um amigo? Elas são onipresentes porque encontram no Brasil um habitat perfeito: lixo, esgoto a céu aberto e um sistema de saneamento que parece saído do século XIX. O Brasil encerrou 2024 como a décima maior economia do mundo[1], mas ainda convive com estatísticas vergonhosas: 35 milhões de pessoas sem acesso a água tratada e 100 milhões sem coleta de esgoto[2]. Isso significa que metade do esgoto do país vai direto para os rios, contaminando tudo pelo caminho, o que equivale a mais de 5,3 mil piscinas olímpicas de esgoto in natura sendo despejadas diariamente na natureza: fossas abertas, crianças brincando em valões de esgoto e baratas servindo como termômetro de um sistema falido, condenando milhões a doenças que poderiam ser evitadas. O pior é que essa realidade não choca mais. Como baratas que se acostumam à escuridão, nos tornamos insensíveis ao absurdo, acreditando que “é assim mesmo”.
Mas a falta de saneamento não é apenas um problema de saúde pública. É um mecanismo de perpetuação da miséria. Quem cresce pisando na lama tem menos chances de escapar do ciclo da pobreza. Países que investiram pesadamente em saneamento viram melhorias na educação, na produtividade e na economia. Um estudo da Universidade de Harvard, realizado em Bangladesh, indicou que a falta de saneamento básico pode afetar o desenvolvimento do cérebro infantil. Resultados preliminares sugerem que doenças inflamatórias, como os patógenos do intestino, são os que têm maior impacto na atividade cerebral. “Se a informação for confirmada, fica reforçada a importância do saneamento”, escreveu a Nature, uma das mais respeitadas revistas científicas do mundo, em artigo dedicado à pesquisa[3]. Convenhamos, expor uma criança saudável ao risco de ter seu desenvolvimento cerebral prejudicado, afetando negativamente sua vida para sempre, é uma enorme crueldade. É isso que governos brasileiros têm feito com milhões de crianças décadas após décadas.
Tão inevitável quanto a morte
Se tem algo mais certeiro do que a chegada do Carnaval ou o surgimento de baratas em ambientes insalubres, é o vencimento dos boletos. Eles chegam sem dó nem piedade, todo santo mês, cobrando pelo direito básico de existir. O brasileiro médio trabalha, ganha pouco e vê seu dinheiro evaporar entre aluguel, mercado e contas básicas. E quando a vida se resume a correr atrás do próximo vencimento, não sobra tempo para pensar em nada além da sobrevivência. Entender de política e economia? Parece um luxo para quem precisa pegar três conduções para chegar ao trabalho e garantir o mínimo. Mais de 60% dos brasileiros não conseguem guardar dinheiro[4]. Isso significa que a maior parte da população vive no limite, sem margem para imprevistos ou para o futuro.
Quando se está preocupado em pagar o aluguel ou colocar comida na mesa, aprofundar-se em política e economia definitivamente não tende a ser uma prioridade. A elite política sabe disso e entende que um povo endividado, exausto e alienado é um povo fácil de manipular. O “pão e circo” nunca saiu de moda — apenas se modernizou. Dentre as dez maiores audiências de todos os tempos da TV brasileira, cinco foram últimos capítulos de novelas, quatro foram eventos de copas do mundo de futebol (três finais e uma abertura) e uma foi a cobertura da morte de um presidente[5]. Enquanto as novelas, os reality shows, os programas de auditório e os campeonatos de futebol cumprem o papel de manter as massas entretidas, as decisões políticas que impactam significativamente o futuro do país são tomadas longe dos olhos cansados de quem precisa pagar as contas.
O Brasil é abençoado por abundância de recursos naturais, por um clima agradável, por uma terra em que “tudo que se planta dá” e pela ausência de terremotos, furações e tsunamis. No entanto, parece preso em um ciclo de mediocridade. Desde a Proclamação da República, navegamos entre instabilidade política, crises econômicas e escândalos de corrupção. Temos recursos naturais de sobra, mas falta planejamento. Temos solo fértil, mas falta um sistema educacional decente. Temos uma terra firme, mas falta segurança pública. Seguimos num eterno desfile de bundas, baratas e boletos, tentando equilibrar a festa e a sobrevivência, o caos e a esperança, tropeçando nos próprios pés, mas nunca deixando de sambar.
E a pergunta que não cala: como mudar e melhorar esse cenário?
Desconfie de quem vende soluções milagrosas. O caminho é longo, árduo e sinuoso, envolve consciência política e sabedoria prática. Para começar, precisamos parar de normalizar o absurdo. Precisamos entender que as baratas não são apenas um incômodo, mas um sintoma de um problema maior. O Brasil tem potencial para ser muito mais do que o eterno país do futuro. Mas, para isso, é preciso enxergar além da festa, além da sujeira, além da correria. Um bom começo seria pararmos de acreditar em político salvador da pátria, de nos acomodar com ajuda estatal e de nos sabotar nutrindo ressentimento e autopiedade. Em contrapartida, assumamos o papel de principal responsável pelo próprio futuro e enfrentemos com dignidade as consequências de nossos atos, sem procurar culpados pelos nossos eventuais fracassos. Precisamos, acima de tudo, ser resilientes, o que, para muitos, significa ter fé. E mão na massa. Assim, concluo com o conveniente verso do samba “Volta por Cima” de Paulo Vanzolini:
“Reconhece a queda / e não desanima. / Levanta, sacode a poeira / e dá a volta por cima”
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Blog do autor: https://blogdoguilhermeazevedo.blogspot.com/2025/03/por-guilherme-azevedo.html?sc=1736781073363
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[1] https://istoedinheiro.com.br/brasil-cai-uma-posicao-e-encerra-2024-como-a-10a-maior-economia-do-mundo-veja-ranking/, consultado em 9/3/2025.
[2] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/03/20/saneamento-basico-100-milhoes-de-pessoas-nao-tem-rede-de-esgoto-e-falta-agua-potavel-para-35-milhoes.ghtml, consultado em 9/3/2025.
[3] https://www.terra.com.br/noticias/falta-de-saneamento-basico-afeta-desenvolvimento-do-cerebro-infantil-sugere-estudo,f5d286414af1f955d227d856b7ade171grz6m4uf.html?utm_source=clipboard, consulta feita em 9/3/2025.
[4] https://www.cnnbrasil.com.br/economia/financas/maioria-dos-brasileiros-nao-consegue-guardar-dinheiro-mostra-pesquisa/#:~:text=Maioria%20dos%20brasileiros%20n%C3%A3o%20consegue%20guardar%20dinheiro%2C%20mostra%20pesquisa,-Especialista%20d%C3%A1%20dicas&text=A%20pesquisa%20%E2%80%9CPulso%202023%E2%80%9D%20da,ou%20n%C3%A3o%20responderam%20%C3%A0%20quest%C3%A3o., consultado em 9/3/2025.
[5] https://oantagonista.com.br/analise/as-10-maiores-audiencias-da-tv-brasileira/, consultado em 9/3/2025.
O Brasil mesmo aos trancos e barrancos tende a encontrar o seu futuro de grande nação. Entre os obstáculos para atingir seu destino a esquerda é a maior pedra no caminho. Mas este obstáculo pode ser ultrapassado nas eleições de 2026. Uma vitória consagradora da direita democrática sobre a esquerda deleterea selará o fim desse atraso. Que o povo tenha a lucidez de defender o seu futuro, dos seus filhos e das gerações vindouras