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Instituto Civitas

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Ativismo judicial: Quem define os rumos da nação?

Por Wladymir Soares de Brito Filho

1. O que é o ativismo judicial?

            A vida em sociedade é regida por costumes, convenções e continuidade. Através de um processo contínuo e espontâneo, as normas de convivência mais perfeita entre os conterrâneos vão sendo estabelecidas e repassadas às próximas gerações, num grande pacto firmado entre os vivos, seus antepassados e seus descendentes. As normas mais elevadas e importantes de um povo, que servem de fundamento para todas as demais regras de convivência e organização, estão reunidas em um documento: a Constituição.

            O poder político de uma nação é, portanto, limitado pelas regras e princípios jurídicos que compõem sua Constituição. Uma das principais tarefas desta Constituição é repartir o exercício do poder entre diferentes órgãos – Executivo, Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Tribunais de Contas, atribuindo a cada um competências específicas. Para que estes poderes possam conviver de forma harmoniosa e independente, a Constituição estabelece também um sistema de “freios e contrapesos”, ao determinar que cada Poder fiscalize o exercício do outro.

            O Brasil, por ter sido colônia de Portugal, integra a tradição jurídica da Civil Law, estabelecida por Roma e Grécia. Trata-se de um sistema jurídico no qual a legislação é escrita: o Direito é estabelecido por normas que, na maioria das vezes, estão previstas e escritas em leis e códigos – inclusive a própria Constituição. Neste sistema o papel do Judiciário tem sido o de interpretar e aplicar a lei aos casos que lhe são submetidos.

            Quando um agente público viola clara e diretamente as Leis ou a Constituição, exorbitando de suas competências ou mesmo praticando crimes, não há dúvidas de que o Poder Judiciário deve ser provocado para assegurar a ordem e a justiça, fazendo cumprir o império da lei. O problema aqui examinado surge quando os Poderes da República divergem entre si sobre como cumprir a Constituição na prática do dia a dia.

            Tomemos como exemplo o caso mais comum na atualidade: o Poder Executivo, no exercício de sua competência constitucional, toma determinada decisão. O Ministério Público, por sua vez, questiona tal decisão, entendendo que ela viola algum valor constitucional ou direito fundamental. Surge, então, um impasse: quem tem razão?

            A grande questão é saber quem tem a palavra final sobre o que está escrito na Constituição. Quem decide a disputa entre diferentes Poderes da República, já que todos devem obedecer às mesmas normas constitucionais, mas podem chegar a conclusões totalmente diferentes sobre o conteúdo da lei e sobre a melhor forma de aplicá-la? Em última instância, este papel de decidir os conflitos é do Poder Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal, seu órgão de cúpula.

            Quando alguém ajuíza um processo, esta pessoa apresenta ao juiz um problema para ser resolvido. Para decidir este conflito, todo juiz tem o dever de interpretar o texto da lei para então aplicá-la. Contudo, quais são os limites desta atividade? Até onde pode ir o juiz ao interpretar o texto escrito da Lei ou da Constituição? Deve ele levar em consideração o seu senso pessoal de justiça ao julgar, ou deve se ater ao que está escrito no texto? A complexidade reside, portanto, na zona cinzenta aberta pelas diferentes interpretações possíveis das normas jurídicas – muitas delas repletas de conceitos jurídicos indeterminados.

            Entra em cena então o problema do ativismo judicial, que nada mais é do que o fenômeno da atuação expansiva e proativa do Poder Judiciário ao interferir em decisões de competência de outros Poderes da República (como as políticas públicas a cargo do Executivo ou as leis emanadas do Legislativo), visando atingir determinada finalidade – legítima ou não.

            Há duas grandes visões sobre o Papel do Judiciário na interpretação das normas jurídicas. São elas:

  • A conservadora – que defende que os juízes devem se limitar a captar o sentido expresso da norma ou, pelo menos, aqueles tidos como claramente implícitos, levando em consideração a vontade do legislador que a promulgou. A lei não pode ser uma mera sugestão ao juiz, passível de ser deixada de lado em nome do senso pessoal de justiça de quem julga o processo. Nas palavras do célebre Antonin Scalia, o “juiz expressa a vontade de juiz, e não do povo. Decisões morais devem ser do povo e do Legislativo”.
  • A progressista – que entende que o Judiciário, ao interpretar as normas jurídicas, pode ampliar o sentido e o alcance destas, em nome da justiça e da igualdade. Por ser a Constituição a ordem maior dos valores de uma sociedade, a modernidade impõe ao juiz a tarefa de aplicar diretamente os princípios constitucionais (abertos e abstratos) para resolver casos concretos. O juiz almeja uma finalidade social, e a interpretação das normas jurídicas é um meio para alcançá-la. Trata-se de uma postura preocupada acima de tudo com a concretização das normas constitucionais na sociedade e com o atingimento de determinadas finalidades tidas como moralmente superiores.        

            Este fenômeno do ativismo judicial, que ganhou impulso no Brasil a partir da judicialização das demandas sociais promovida pela Constituição de 1988, não está restrito ao âmbito do Supremo Tribunal Federal, já que qualquer juiz brasileiro deve praticar o controle de constitucionalidade de normas e leis – e pode, portanto, ser “propositivo” neste processo de criação e aplicação do Direito.

2. Exemplos recentes de ativismo judicial no Brasil

            O ativismo judicial leva a um decisionismo: no fim das contas, o juiz vai decidir do jeito que ele acha que deve ser a solução do caso. O problema é que, numa democracia, o juiz não recebeu da sociedade a legitimidade para fazer isso.

            A forma mais perigosa de ativismo judicial ocorre quando os juízes, que não são eleitos pelo povo, proferem decisões judiciais que anulam, refazem ou substituem as escolhas feitas anteriormente pelos Poderes legitimados pelo voto popular, sob a justificativa de que estão resguardando a “efetiva concretização” dos valores e normas constitucionais – cujo sentido e alcance são por eles ampliados a seu bel prazer.

            Segundo o Ministro Luís Roberto Barroso, o maior defensor do ativismo judicial no Brasil, três são as formas de ativismo do Judiciário em relação aos demais Poderes da República: primeiro, pela ação direta sobre o Legislativo, aplicando diretamente as normas constitucionais a situações não previstas em lei; segundo, pela ação negativa sobre o Legislativo, pela declaração de inconstitucionalidade de leis com base em critérios mais atinentes ao progresso social do aqueles presos “à letra fria da lei”; por fim, pela ação direta sobre o Executivo, determinando a adoção ou supressão de políticas públicas com base em valores constitucionais e em direitos fundamentais.

            Que fique claro: quando o Poder Judiciário é provocado para fazer cumprir a lei, cumpre o seu papel de órgão julgador e resguarda o Estado de Direito. Mas e quando há abuso por parte do próprio Judiciário, adentrando nas competências dos demais poderes para atuar como administrador ou legislador ad hoc, fazendo valer a sua própria vontade em detrimento da vontade do povo expressa nas Leis e na Constituição?

            A verdade é que a sociedade brasileira vem assistindo, perplexa e atônita, aos mais variados exemplos de ativismo judicial do tipo mais nocivo, quando fica evidente que os gostos e preferências pessoais de juízes imbuídos de ideologias progressistas são impostos à população, travestidos da defesa “isenta e imparcial” de valores constitucionais e direitos fundamentais.

            Um exemplo perfeito do problema aqui tratado é a decisão proferida em 2019 pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 026/DF, ao estabelecer que a Lei nº 7.716/1989, que trata do crime de racismo, pode ser aplicada para punir as condutas homofóbicas e transfóbicas – mesmo que tais condutas não estejam tipificadas como crimes em lei nenhuma, distorcendo completamente o princípio da reserva absoluta de lei formal (“não há crime sem lei que antes o preveja”).

A construção jurídica ativista empregada pelo Supremo Tribunal Federal foi a seguinte: a partir de uma interpretação progressista dada a três princípios constitucionais diferentes (criminalização do racismo, proibição de condutas discriminatórias que atentem contra direitos e liberdades fundamentais e princípio da proibição de proteção deficiente), os ministros fizeram uma ginástica hermenêutica para enxergar a existência de um “dever” do Poder Legislativo em elaborar uma lei penal que punisse a homofobia e a transfobia como espécies do gênero racismo. Como este “dever” até hoje não foi cumprido pelos representantes eleitos pelo povo, haveria então uma omissão constitucional a justificar a atitude arbitrária do Supremo Tribunal Federal em passar por cima do Congresso Nacional e determinar a aplicação da Lei do Racismo a tais condutas.

Outro exemplo recente no Brasil foi o caso Ramagem. Através de decisão liminar proferida no Mandado de Segurança nº 37097/DF, o ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagem para a chefia da Polícia Federal, por considerar viável a ocorrência de desvio de finalidade do ato, “em inobservância aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”. A decisão levou em consideração as denúncias feitas pelo do ex-ministro da Justiça e da Segurança Pública Sérgio Moro de que o presidente da República, Jair Bolsonaro, pretendia fazer intervenções políticas na Polícia Federal.

Nas palavras de Ives Granda Martins, “não consigo encontrar nenhum dispositivo que justifique a um ministro da Suprema Corte impedir a posse de um agente do Poder Executivo, por mera acusação de um ex-participante do governo, sem que houvesse qualquer condenação ou processo judicial a justificar”.

            Portanto, para os ativistas o que importa é concretizar a Constituição e dar a ela efetividade – desde que se trate de uma Constituição moldada de acordo com a visão de mundo particular do julgador. Os usos, costumes e convenções de um povo, construídos espontaneamente ao longo dos séculos de cultura e tradição na sociedade, são prontamente substituídos pelas construções “racionais” do juiz – imbuído da missão heroica de construir uma Grande Sociedade e defender os “direitos fundamentais” – desde que conceituados de acordo com seus gostos e preferências.

            Gradativamente, as decisões políticas fundamentais vão sendo retiradas do povo e de seus representantes eleitos, e transferidas aos tribunais. A segurança jurídica é ferida de morte, já que reina a imprevisibilidade decorrente da cabeça de cada juiz. Quando a interpretação e a aplicação das normas jurídicas têm como objetivo cumprir determinada agenda ideológica defendida pelo magistrado, a sociedade acaba ficando refém do poder a eles conferido – pela própria Constituição – para determinar, em última instância, o que a lei realmente quis dizer – ou pior, o que ela deveria dizer.

            A revolução moderna vem, portanto, não mais através da mira violenta de um fuzil, ou pela comoção causada pela eleição de um líder popular reformista – mas através da interpretação progressista dada às normas constitucionais por juízes autoritários em suas decisões arbitrárias.

3. Como enfrentar o ativismo judicial?

            Se o Executivo ou o Legislativo cometem abusos, o Judiciário pode – e deve – ser chamado para controlá-los. Contudo, se é o juiz que abusa de suas funções, impondo sua visão de mundo e distorcendo o Direito neste processo, quem pode controlá-lo em última instância? Se o Poder Judiciário é o guarda-maior das Leis e da Constituição, fica a pergunta: quem vigia os vigias? É atribuída à Ruy Barbosa a constatação de que “a pior ditadura é a do Poder Judiciário, pois contra ela não há a quem recorrer”.

            Como a sociedade brasileira pode, portanto, reagir ao avanço, até então inconteste, do ativismo judicial por nossas bandas? Não há uma única resposta, e nem uma solução simples.

            No âmbito do próprio Poder Judiciário, devemos cobrar que os juízes submetam suas decisões a um rigoroso processo de fundamentação, demonstrando que a solução empregada é razoável e proporcional. A estrutura hierárquica do Judiciário permite que as decisões sejam revistas por juízes mais antigos e experientes, o que pode ajudar a controlar o ativismo de juízes de primeira instância, mas pouco ajuda no caso de decisões de órgãos superiores. 

            Devemos nos valer também do sistema de “freios e contrapesos” instituído pela Constituição, que determina que um poder fiscalize o outro. Assim, uma atuação firme e decisiva dos Poderes Legislativo e Executivo pode amainar a sanha ativista de parte dos juízes brasileiros, de diferentes maneiras. Quando há interpretação autêntica por parte do Legislativo, ou seja, quando a própria lei traz em si artigos explicando os conceitos por ela empregados, diminui-se a margem de interpretação aberta aos juízes, limitando o alcance do ativismo.

            Vimos que compete ao Supremo Tribunal Federal dar a última palavra acerca da interpretação da Constituição – impulsionando ou limitando o ativismo judicial no Brasil como um todo. Neste contexto, é atribuição do Poder Executivo, através do Presidente da República, a indicação de novos ministros para o Supremo Tribunal Federal, cabendo ao Senado Federal aprovar a escolha. Ainda, cabe ao Senado Federal processar e julgar os pedidos de impeachment contra Ministros do Supremo Tribunal Federal que pratiquem crimes de responsabilidade no exercício de suas funções.

            Por fim, todo o poder emana do povo – e é claro que o povo também interpreta a Constituição e pode, portanto, questionar os atos, leis e decisões emanados “em seu nome”. Ao invés de longos e enfadonhos votos que buscam traduzir qual é a “vontade do povo” segundo a cosmovisão do juiz de plantão, a ordem democrática permite que o próprio povo manifeste, sempre de forma pacífica e ordeira, e sobretudo em situações de especial relevância, quais são seus reais anseios e preferências – sem a necessidade de intérpretes.

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