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Línguagem neutra: Por que as pessoas relutam em aceitar?

Por Paulo Portinho

Esse é um tema tão polêmico que só o título já deve suscitar paixões e colocar o autor na difícil situação de ter que assumir um posicionamento sobre o tema.

Adianto que não vou me ater ao debate corriqueiro, que trata de correção ou incorreção gramatical, de agenda cultural, de dominação político-ideológica etc.. Meu foco será mostrar como os conceitos de Lei Natural e Positivismo nos afastam da aceitação da linguagem neutra de gênero (“LNG”).

Em outras palavras, provavelmente os argumentos aqui apresentados não serão os mesmos que a maioria das pessoas usa diante da questão, para justificar seu posicionamento.

A língua não é estanque, é fluida e muda com o tempo.

Esse é, provavelmente, o único argumento não ideológico e não político dos defensores da LNG. Afirmam que o idioma muda com o tempo, incorporando simplificações e alterações que se adéquam ao espírito de cada época.

Esse argumento não tem grande apelo junto aos detratores da LNG, pois os caminhos que fizeram “Vossa Mercê” se tornar “você”, Maracanã se tornar Maraca, ou processamento digital se tornar “renderização”, não tem qualquer relação com o caminho pelo qual se tenta impor uma forte alteração de regras gramaticais, forçando o abandono da regra culta, através da linguagem neutra de gênero.

Enquanto a língua se modifica, de fato, por processos naturais, simplificadores, promotores de entendimento, não destruidores da consistência linguística e, principalmente, não conflitantes com o objetivo básico de um idioma (a comunicação de qualidade), a LNG é um movimento que se força na língua, que se impõe através de propaganda massiva e coerção política. A adesão não é voluntária, mas obrigatória e forçada, até com punição social para quem não aderir.

Ninguém obrigou os usuários da língua culta a migrar de vossa mercê para você. Aconteceu e a história vitoriosa da simplificação foi escrita depois e incorporada ao idioma naturalmente, sem prejuízos à capacidade e à higidez da comunicação.

A Lei Natural como balizadora do comportamento e da verdade*

A Lei sempre representou algo que o indivíduo deveria seguir, pelo seu próprio interesse, como membro de uma sociedade. Para um indivíduo sozinho, onde não há a figura de conflito com outros indivíduos da mesma espécie, não é necessário um árbitro, pois não há situações a mediar.

Por questões históricas, que debato no meu livro “Tudo é Impossível, Portanto Deus Existe“, nos três primeiros capítulos onde trato da história da racionalidade e do relacionamento do Homem com o mistério, a primeira sensação de “Lei” derivava de nosso relacionamento com a natureza e da percepção de como deveríamos nos comportar para maximizar nossos objetivos, individuais e tribais. No início, o único objetivo realmente relevante era garantir a troca de energia (esforço que se transforma em alimento) e a proteção contra predadores.

Nos primórdios das relações humanas, o que mais havia era esse questionamento sobre os mistérios da natureza, dada a fragilidade do Homem. Por motivos que discuto também no livro, desenvolvemos um relacionamento com o mistério (aquilo que não se sabe) que derivou na construção de dogmas comportamentais, associados a relacionamentos com divindades, ou de um Deus todo poderoso (aquele que sabe o que não sabemos), que proveria caso seguíssemos essa Lei Natural, Revelada ou Divina.

E durante muitos séculos, os homens aceitaram algumas versões reveladas dessa lei de comportamento diante da natureza, da sua pequena comunidade e do mistério.

Em outras palavras, o Homem aceitou, por séculos, Deus e a Lei Revelada, como árbitros da verdade e da conduta social.

A Lei Positiva como balizadora do comportamento e da verdade

Com o desenvolvimento da ciência e com o poder crescente do método científico para nos explicar o que sempre havia sido mistério, cuja compreensão outrora estaria ao alcance apenas de Deus, houve uma migração, pós-iluminismo, para um balizador racional, a Lei Positiva, Racionalista ou Demonstrada.

Enquanto para a vida privada e para sua comunidade próxima o homem continuava utilizando a Lei Divina como balizadora da ação moral, individual ou coletiva, nos debates públicos, em que se precisava definir um padrão de comportamento e moral para toda a sociedade, gradualmente a razão formal e a lógica aristotélica da não contradição, foram assumindo papel fundamental como árbitros de conflitos provenientes da ação natural do Homem.

De forma resumida, o Homem aceitava Deus como árbitro dos conflitos humanos, naturais e inerentes da vida complexa que vivemos, até hoje aceita, porém, parou de forçar o argumento teológico e dogmático na esfera do debate público. Nessa esfera de debate, o argumento passou a ser racional e objetivo, com base no Positivismo e no Racionalismo.

Ambas as instâncias arbitrais, Revelação e Razão, trazem elementos de tradição, ou seja, a Lei tende a ser conservadora e evita ao máximo a revolução, sob risco de ver desmoronar o edifício legal construído em milênios de análises, de práticas, de jurisprudências e avaliações da ação humana, para desenvolvimento de códigos de conduta que enriqueceram a sociedade e que a fizeram cada vez menos injusta.

A Linguagem Neutra de Gênero não encontra respaldo no Direito Natural ou no Direito Positivo.

O Homem aceita ser julgado por Deus e/ou aceita ser julgado por um arcabouço legal construído com base na razão e na filosofia do direito positivo, mas não aceita ser julgado por um ato revolucionário sem respaldo em alguma espécie de tradição ou racionalidade formal.

O “faz o que eu mando”, não funciona com indivíduos adultos e livres. Para ele entregar a terceiros o julgamento do que é certo ou errado, é preciso que esse terceiro seja reconhecidamente um perito, que se vale da tradição que sobreviveu ao teste do tempo, ou de justificativa racional inequívoca (lógica aristotélica) ou suficientemente demonstrada de forma empírica.

A justificativa de criar uma linguagem nova, que não permita que alguém se sinta ofendido, tem vários problemas. O primeiro é achar que a linguagem é objetivamente ofensiva, ou seja, que uma palavra ou um uso gramatical seriam, independentemente da situação subjacente, ofensivos. Não são. Basta ver a mais bem-sucedida campanha contra uma palavra na história do movimento identitário: a proibição da N-word. A N-word é totalmente proibida nos EUA, mas apenas para brancos. Comediantes negros usam o tempo inteiro, e todos acham graça. Inclusive os brancos, que não podem usá-la (é tão proibida e estigmatizada, que não vou usá-la aqui, infelizmente o leitor precisará procurar no google, caso não conheça a expressão).

A pessoa não-negra não usa, por força da coerção social e dos riscos de cancelamento e processos penais que correria se usasse, mas não por força de convencimento com base na Lei Revelada, Natural ou na tradição, ou na Lei Demonstrada, da razão e da razoabilidade.

Um segundo problema é submeter o objetivo principal da linguagem, que é promover a comunicação de qualidade entre indivíduos que compartilham aqueles códigos, a uma agenda de supremacia ou combate à supremacia de alguns poucos indivíduos que impõem sua vontade social e política de forma coercitiva. A Agenda nunca é de um grupo social inteiro, mas de um grupo mais ativo na militância.

Essa questão do uso da linguagem como elemento de controle e dominação, através da alteração constante de seus significados, não é nova e foi tema do livro 1984, com o dicionário da novilíngua, que ensinava as pessoas a ter raciocínio inconsistente e ilógico, o que garantia o poder permanente ao regime, pois neutralizava a capacidade de criticar. Quem não consegue reconhecer uma inconsistência intelectual não é racional. Quem não consegue reconhecer uma inconsistência intelectual não é íntegro o suficiente para ser confiável.

Recentemente até o Putin lembrou que essa estratégia de usar a linguagem como elemento político, através da alteração constante de seus símbolos e significados, era corriqueira na URSS. E deu errado, segundo o próprio Putin, que tinha papel de destaque naquele regime.

Não há caminho natural ou negocial para aceitação ou convencimento da LNG

Para quem delega o direito de arbitrar sobre o que é certo ou errado ao Direito Revelado ou Natural (palavra de Deus ou de acordo com a natureza do Homem) ou ao Direito Demonstrado (direito positivo, baseado no sistema lógico), a LNG não tem apelo.

A LNG não é, evidentemente, uma verdade revelada, não é a Palavra de Deus, na verdade nem é tema de debate nas escrituras, apesar da questão subjacente, do gênero e da sexualidade, ser tratada nas escrituras e, também nesse caso, as variedades de gênero e/ou sexualidade fluida propostas pela modernidade, também não encontram respaldo nas tradições reveladas.

Já no direito positivo, no debate público focado na razão, a questão da igualdade perante a lei é facilmente demonstrável como uma evolução civilizatória. Sempre que houver defesa de direitos civis, a racionalidade aristotélica vai conseguir ser usada para arbitrar questões de liberdade individual e coletiva.

Porém, no caso específico da LNG, a questão não é de direitos civis, nem é para ser matéria de lei positiva.

Ao contrário, as leis que garantem a liberdade individual e o direito à crença, protegem o indivíduo de ser obrigado, sem qualquer plausibilidade técnica ou social, a respeitar regras gramaticais fluidas criadas por pequenos grupos militantes sem qualquer discussão ampla na sociedade e, principalmente, criadas por gente sem qualquer expertise em linguística.

Uma coisa é alguém pedir para ser chamado de “ela”, entendo que, em termos de regras de convivência social, é razoável que alguém possa ser chamado do que quiser, outra coisa é criar regras gramaticais sem respaldo na técnica linguística, e forçar as pessoas a seguirem, com criação de palavras e significados fluidos que não fazem sentido para a maioria esmagadora das pessoas. E criar punições e perseguições públicas para quem erra seu uso, transformando o erro em transgressão moral, passível de punições graves.

Conclusão

A questão não é técnica ou de justiça, não é de direito ou de idioma. Se fosse, os argumentos seriam técnicos e aristotélicos, ou seja, sem contradição desnecessária e colocados da forma mais objetiva possível.

As pessoas têm uma dificuldade enorme de aceitar a LNG, pois não delegam seu julgamento sobre o que é certo e errado de forma leniente, a qualquer um e a qualquer apelo. A maioria das pessoas muda de opinião sobre algo importante com base em um misto de tradição e racionalidade. Para os mais religiosos, a tradição falará mais alto e a racionalidade precisará ser impecável, para movê-los ao novo entendimento. Tem sido essa a história do Ocidente há 500 anos. Para os racionalistas/positivistas, idem, a racionalidade também precisa ser impecável para substituir uma outra crença intelectual firme e enraizada.

Como a base da imposição social da LNG não é racional ou tradicional, é de interesse de grupos, que não deveriam ter ascendência política sobre outros grupos, as pessoas relutam em aceitar e provavelmente não o farão voluntariamente.

Resta a técnica da URSS, coerção. No mundo moderno isso se dá através dos cancelamentos sociais, do menosprezo à posição religiosa, da penetração nos principais meios de comunicação e na inclusão da exigência da LNG em várias instâncias culturais, como cinema, teatro, escolas, currículos, trabalho etc.

É um momento delicado para a humanidade. A Lei Natural dialogava com a Lei Positiva, através da razão e da razoabilidade. Ambas não dialogam com o irracionalismo pós-modernista, que transforma todos os elementos da cultura humana em armas de guerra político-ideológica.

Dá para o mundo ser melhor do que hoje, sem necessariamente voltarmos ao passado, mas me parece que essas imposições revolucionárias contra a tradição e a razão não são o caminho. Podem levar a mais sectarismo e afastamento.

* Eu não utilizo a expressão Lei Natural (ou Direito Natural) na minha abordagem filosófica, pois julgo ser mais uma convenção natural do que uma Lei propriamente dita. Mas para os objetivos desse texto, a expressão funciona sem reparos.

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