Escamas
Por Sandra Kucera
A conversão do apóstolo Paulo traz uma preciosa lição para os dias que vivemos.
Logo após a visão do Cristo, às portas de Damasco, fora ele acometido de intensa cegueira que lhe manteve em densa treva durante três dias. Por exortação inspirada do próprio Nazareno, fora até ele Ananias que, impondo-lhe as mãos restitui-lhe a visão. A narrativa de Atos 9:18 conta-nos que, neste momento, “lhe caíram dos olhos como que escamas, e recobrou a visão.” O fato merece nota.
As escamas falam de algo disforme, inumano, denso, pegajoso, liso, firmemente aderido, com que houvera revestido os olhos. Representam as verdades humanas com que tinha locupletado sua alma até então, todas as suas certezas sobre Deus e o mundo, suas escolhas, seu modo de agir em defesa da Lei, de acordo com convicções próprias que não se ajustavam à bondade do Criador.
Ao despertar para o Cristo, fora preciso desvencilhar-se do seu falso saber, despir-se de si mesmo, para que pudesse então “recobrar a visão”, agora nítida, limpa, cristalina, e passou a ver como jamais houvera visto antes. Fora preciso a treva completa de três dias para que parasse de fixar-se nas referências humanas e voltasse os olhos para a alma, morada do Divino em nós.
Não poucas vezes a humanidade transitou pela mesma experiência, a cegueira, a treva, apesar de “ver”.
Copérnico, no início do século XVI, propôs os primeiros estudos sobre o Heliocentrismo, Kepler aperfeiçoou suas observações, mas foi somente com Galileu Galilei, no início do século XVII, que, através das suas observações e descobertas astronômicas, a teoria finalmente foi consolidada como o movimento dos corpos celestes. Mas o que era a verdade dos astros não era a “verdade” dos homens, e neles não havia disposição para contestação, o que quase custou a vida do astrônomo nas fogueiras da Inquisição, para salvar a pele, viu-se obrigado a retratar-se diante do tribunal, em 1633.
Depois das fogueiras vieram as guilhotinas, os campos de concentração, a privação alimentar, os fornos… Sempre em defesa de “verdades” e da “lei”.
Durante cinco anos, de 1957 a 1962, a Talidomida fora prescrita sem distinção de condição especial, em 46 países do mundo, como uma droga capaz de combater os enjôos matinais de mulheres grávidas, dentre outras possibilidades de uso. Quase todo o mundo estava seguro da sua utilização, confiantes no que sabiam até então; uma das exceções foram os EUA, que manteve prudência e não se deu por satisfeito com os testes clínicos apresentados pela indústria e não autorizou o seu uso. Somente depois de mais de 10 mil casos de bebês nascidos ao redor do mundo com malformações as mais diversas que a relação entre a droga e a teratogênese foi estabelecida e fora então retirada do mercado. O custo foi uma geração de crianças mutiladas.
Em todas as épocas, verdades transitórias sempre cobraram o preço de vidas humanas para sustentarem- se.
Hoje não temos mais fogueiras físicas, mas as temos virtuais, que matam em vida, abafando vozes que ousem questionar as verdades do momento, cujos proclamadores e arautos apresentam-se sob o véu da virtude e do saber, mantendo o monopólio da informação e sustentando-se por algum tempo.
Sim, por algum tempo, “pois nada há de oculto que não venha a ser revelado, e nada em segredo que não seja trazido à luz do dia” Mc 4:22.
Assim como o Heliocentrismo, a barbárie, o Holocausto, o Holodomor e a Talidomida alcançaram a luz da razão, também toda verdade humana de hoje enfrentará o teste do tempo, que é inexorável. Nesse dia, escamas cairão dos nossos olhos e, despertos, voltaremos a enxergar e haveremos de entregar nossa visão, assim como todas as potências da nossa alma, não mais para tutores humanos que guiam por interesse, mas para Deus, que nos guia por amor.