𝗗𝗢 𝗟𝗜𝗕𝗘𝗥𝗔𝗟𝗜𝗦𝗠𝗢 𝗖𝗟Á𝗦𝗦𝗜𝗖𝗢 𝗔𝗢𝗦 𝗦𝗨𝗣𝗘𝗥𝗣𝗢𝗗𝗘𝗥𝗘𝗦 𝗖𝗜𝗩𝗜𝗦, 𝗖𝗢𝗠𝗢 𝗖𝗛𝗘𝗚𝗔𝗠𝗢𝗦 À 𝗣𝗢𝗟𝗔𝗥𝗜𝗭𝗔ÇÃ𝗢 𝗘𝗫𝗖𝗘𝗦𝗦𝗜𝗩𝗔 ― Por Paulo Portinho
Bastiat, Mill, Say e outros filósofos do liberalismo clássico ajudam, mas não resolvem. Dão as bases, mas não explicam. Precisamos de mais do que esses pensadores ofereceram, para entender a polarização político-ideológica excessiva que o mundo ocidental experimenta no século XXI.
Neste artigo, vou procurar transcender o pensamento clássico liberal para procurar encaixar seus fundamentos na realidade tecnológica do Século XXI, da seguinte forma:
- Defino um quadro cognitivo válido para o que seria um governo genuinamente liberal;
- Argumento que a liberdade coletiva é um conceito atraente, porém impossível;
- Disserto sobre a tomada dos movimentos liberais nos EUA por forças coletivistas;
- Apresento a ideia de superpoderes civis como sendo o turning point da polarização.
O que seria um governo genuinamente liberal?
Em 1964 o juiz Potter Stewart, durante o caso Jacobellis v. Ohio, reconheceu a dificuldade para definir formalmente o conceito subjetivo de obscenidade, mas afirmou que, mesmo não sabendo definir, ele sabe o que é, quando a vê.
Liberdade é também um conceito complexo de formalizar, porém facilmente reconhecido quando nos defrontamos com ela. Tanto a sensação de ter liberdade, quanto a sensação de tê-la cerceada, são profundamente óbvias para quem as experimenta.
Independentemente do que os clássicos escreveram sobre liberdade, entendo que a definição sobre o que seria um governo liberal, que permaneça historicamente válida e pode ser entendida por todos nos dias de hoje, é o seguinte:
Um governo genuinamente liberal é aquele que busca maximizar os graus de liberdades franqueados e percebidos por seus governados. Maximizar graus de liberdade não é maximizar a liberdade, pois cada indivíduo terá suas facilidades e limitações para perseguir esses graus de liberdade. Grau de liberdade é caminho não impedido por força estatal ou paraestatal de maneira desproporcional ou irrazoável.
Parece complexo, mas um exemplo bem simples consegue demonstrar o que seria essa ideia de governo liberal garantindo ordem, garantindo graus de liberdade e evitando impedimentos estatais irrazoáveis para o exercício dessa liberdade.
Sem limites de velocidade em vias públicas, onde passam pedestres e outros veículos, podemos ter uma situação caótica, que, apesar de autorizar alguém a andar a 200 km/h, traria menos sensação de liberdade, pois o excesso de risco é uma forma de reduzir a percepção dos graus de liberdade. Por outro lado, os acidentes poderiam ser reduzidos a zero, se as vias fossem bloqueadas ao tráfego. Cabe ao governo genuinamente liberal deliberar sobre a decisão dos limites, buscando maximizar o potencial de exercício dos graus de liberdade em casos como o exposto.
Ao tratarmos de graus de liberdade franqueados e não de liberdade em si, retomamos a ideia fundamental do liberalismo clássico, que é a autonomia e a soberania do indivíduo sobre si mesmo. Essa é a carga de responsabilidade que o liberalismo cobra de cada um de nós, para que possamos trilhar os graus de liberdade que nos são franqueados.
Reforçando com mais um exemplo. No mundo atual, existe um grau de liberdade integralmente franqueado para quem quer se tornar um jogador de basquete, mas um jovem de 1,60m teria enorme dificuldade para experimentar esse caminho com sucesso.
O liberalismo entende que, com autonomia e soberania sobre si mesmo, esse jovem pode compreender sua realidade e buscar os caminhos que conseguiria trilhar com mais sucesso e competência. Esse deve ser o verdadeiro sentido da “busca pela felicidade”, escrita por Thomas Jefferson na Declaração de Independência dos EUA:
“Nós consideramos estas verdades como autoevidentes: que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade”
A fundamentação liberal passa por isso, pelo reconhecimento de que a liberdade possível e genuinamente atingível é a individual, e que apenas um indivíduo que exerce autonomia e soberania sobre si mesmo pode explorar o potencial real dos graus de liberdade que lhe são franqueados.
A “liberdade coletiva” é uma corrupção da fundamentação liberal
Quem deseja o impossível na política, será representado por um mentiroso.
A política é a arte do possível, e a liberdade coletiva é um conceito atraente, mas ilusório. Nenhum governo conseguirá criar caminhos de liberdade com resultados idênticos para todos os indivíduos.
A sociedade liberal oferece graus de liberdade, mas não oferece liberdade em si, pois esta é sempre uma experiência de ordem pessoal. Uma pessoa com obesidade mórbida terá dificuldades maiores para usufruir de graus de liberdade bem simples, como se sentar confortavelmente em transporte público, passar pela roleta do ônibus ou até caminhar a um metrô próximo de sua casa.
As limitações não são causadas pela coisa pública, o estado liberal agiu, oferecendo, por exemplo, abundância de transporte público acessível e próximo das residências. A limitação é privada e ao nível individual. Cada um tem um grau de limitação, que precisa ser reconhecido pelo exercício da autonomia e soberania sobre si mesmo.
O governo liberal não é insensível às condições pessoais, pelo contrário, se conseguir ampliar o potencial de exercício dos graus de liberdade a pessoas com dificuldades, sem reduzir de forma desproporcional e irrazoável o de todos os outros, poderá fazê-lo mantendo sua condição liberal.
A decisão, por exemplo, de exigir de Companhias Aéreas a oferta de 2 ou 3 assentos para pessoas com obesidade, pagando o mesmo, traz externalidades negativas que podem, para o conjunto da sociedade, reduzir de forma desproporcional e irrazoável o potencial de exercício dos graus de liberdade dos outros cidadãos.
Outro ponto sobre as “vitórias coletivas”, é que elas nunca atendem a todos da mesma forma.
No caso citado, um grupo de pessoas não atendidas pelo benefício talvez não consiga mais viajar, ou vai viajar menos, por conta da alta dos preços. E não há como controlar o que essas pessoas sentirão a respeito do grupo beneficiado. Além disso, é provável que a maioria das pessoas potencialmente beneficiadas, jamais entraria num avião, pois essa é a realidade financeira da maioria dos brasileiros. E talvez sofram preconceito indireto, por algo do qual nem se beneficiaram. A pessoa acima do peso pode até ser, pessoalmente, contrária às alterações na lei, mas, pela condição física, vai sofrer preconceito da mesma forma. Ainda que escondido e velado. E, obviamente, se era contrária, não estará sendo atendida.
Por isso um governo liberal precisa maximizar graus de liberdade e seu potencial de exercício, considerando situações naturais de conflito, em que facilitar o exercício dos graus de liberdade a alguns, retirará de outros, e gerenciar essas situações para garantir que a ação que reduz a liberdade de determinado grupo não seja desproporcional ao benefício gerado para o grupo com interesse antagônico.
Não há governo que vá garantir a um baixinho o sucesso no basquete, assim como não há governo que saiba o que se passa no íntimo de cada governado, que é onde se encontra o verdadeiro poder para se adaptar à realidade e perseguir uma vida com o máximo de felicidade e completude. Querer se completar no impossível, é perda de tempo e desperdício de vida, e quem promete isso está mentindo, normalmente por motivação política.
Direitos civis, cotas e reparação histórica não explicam a polarização
Thomas Sowell foi perguntado sobre o que diria aos ativistas dos direitos civis, e respondeu: – Podem ir para casa, vocês venceram.
A vitória dos movimentos genuinamente liberais pelos direitos civis, nos EUA, foi tão acachapante, que seus princípios, hoje, são defendidos até por conservadores e religiosos.
As vitórias que buscavam igualdade perante a lei eram genuinamente liberais, e foram obtidas de uma forma clara e avassaladora, de maneira que muitos ativistas passaram a mirar em outras lutas sociais. Nessa esteira, assumiram a liderança dos movimentos sociais os grupos com viés coletivista (não liberal), que passaram a dominar o que antes era visto como pauta liberal, e trouxeram a visão “estrutural” das desigualdades.
Por essa visão estrutural, não bastava a igualdade perante a lei, pois havia uma estrutura, de caráter social, histórico e econômico, que permanecia e trazia impedimentos maiores aos grupos vitoriosos na luta pelos direitos civis do que aos grupos até então hegemônicos.
A visão de que todos deveriam ser iguais perante a lei é extremamente fácil de ser vendida e aceita pela população, pois é o básico da empatia civilizatória em um estado moderno.
Já a ideia de que a estrutura é injusta e que seria necessário aplicar um desequilíbrio artificial em favor dos grupos prejudicadas é mais controversa, mas quase todo mundo consegue perceber que há situações em que determinados grupos partem em desvantagem demográfica. Mesmo em grupos étnicos e econômicos homogêneos há diferenças estruturais, tem gente que parte com vantagens naturais ou artificiais.
Não foi difícil vender a ideia de desequilibrar a balança favoravelmente aos grupos menos privilegiados, e não entendo que isso tenha criado nada semelhante à polarização que encontramos neste ano de 2025.
Mesmo no Brasil, a discussão sobre cotas e vantagens específicas para determinados grupos nunca foi baseada majoritariamente no preconceito, mas na argumentação racional. A maioria esmagadora das pessoas contrárias a cotas destinadas a minorias, aceitariam tranquilamente se fossem destinadas à maioria pobre. Curioso é que isso aplacaria em parte a luta de classes, porém não aplacaria a luta das minorias.
Além disso, o que o grupo hegemônico perdia, parecia pouco. Era apenas o destino de verbas públicas, parte do orçamento, que já é mal utilizado pelos governos. Em outras palavras, o grupo majoritário ou hegemônico, não sentiria perda relevante, e haveria potenciais ganhos, com custo baixo para a coletividade, ao grupo em desvantagem estrutural.
É bem verdade que a política de cotas tem buscado se expandir para ambientes onde pode haver prejuízos desproporcionais, e isso tem potencial para gerar animosidades. Se um grupo que representa 2-3% da população ganha cota de 30% para receber altos salários como servidor público, evidentemente tem potencial para gerar questionamentos de quem está sofrendo exclusão desproporcional. Além de estimular fraudes no sistema.
Mas ainda assim, isso é incipiente e, normalmente, tende a ser barrado nos tribunais e na representatividade democrática. A alternância de poder costuma equilibrar essas questões. Não é isso que explicaria a polarização.
Os superpoderes civis como elemento de desordem no tecido social
Entendo, pessoalmente, que a questão dos direitos iguais e a questão de promover desequilíbrio artificial para beneficiar, econômica e socialmente, grupos em desvantagem histórica (cotas e reparações), foram elementos de debates estruturantes nas sociedades ocidentais modernas. Há histórico de exageros, que acabaram gerando animosidade, mas, em grande parte, permitiram uma sociedade mais inclusiva e que trouxe uma sensação de mais liberdade, mais liberalismo.
Não esqueça, liberdade é algo sentido quando estamos diante dela, e se o sentimento se ampliou para a população em geral, é porque o liberalismo está funcionando na representatividade política.
De uns 10 anos para cá, porém, creio que ultrapassamos o Rubicão do tolerável no embate entre individualismo e coletivismo, e falo aqui do que passo a definir como superpoderes civis.
O que é um superpoder civil? É semelhante ao superpoder estatal em uma autocracia ou ditadura. São direitos desproporcionais e não meritórios que apenas um grupo detém, e o resto deve se submeter.
Um exemplo simples, e para alguns polêmico, pode elucidar essa questão.
Quando passamos a tratar racismo como crime, a maioria das pessoas considerou razoável, até o momento em que se evoluiu para que o rigor da lei só fosse aplicado a um grupo racial. Quando se considerou crime discriminar pela raça ofertas de emprego, entendeu-se como uma medida justa, até o momento em que se percebeu que não haveria problema de oferecer emprego exclusivamente a um grupo racial, enquanto para outro, valeria a letra da lei. Nos EUA, o uso da palavra com “N” é tratado como crime gravíssimo, se utilizada por um grupo étnico, com punições estatais, civis e paraestatais, e não há paralelo com nenhuma palavra que possa ofender o grupo hegemônico.
Como a sociedade incorporou essas distinções em seu sistema de valores, tanto estatal quanto civil e paraestatal, o efeito é de conferir a um grupo poderes que o outro grupo não consegue acessar.
E as redes sociais ampliaram muito a força desses superpoderes civis, pois as pessoas passaram a se expressar publicamente com mais frequência, além disso, as ações e palavras passaram a ser denunciadas de forma orquestrada e em grande volume pelo que veio a ser chamado de “justiceiros sociais”. E a pessoa denunciada, via de regra, perdia a conta na rede social, o emprego, a liberdade ou mesmo sofria violência física. Reforça-se que a atuação aqui não é apenas governamental, mas principalmente privada.
Em adição a esses superpoderes civis, construiu-se um aparato repressivo paraestatal amplamente utilizado no sentido de garantir a eficácia desses superpoderes.
Algo que começou a se discutir abertamente nos EUA, neste ano de 2025, é o poder das ONGs para utilizar verbas públicas e influenciar nas discussões políticas no mundo inteiro, até no próprio Brasil. Centenas de bilhões de dólares sendo usados para financiar o desenvolvimento desses superpoderes civis ao redor do mundo. As ONGs, por definição, não são governamentais, mas utilizam verba pública, por isso funcionam, na definição deste artigo, como aparelho de repressão paraestatal.
Aqui no Brasil temos exemplos semelhantes, mas uma estrutura adicional, levemente diferente, se formou. As ONGs aproveitam que a legislação define crimes de forma genérica e acionam o judiciário para representar esses direitos coletivos e processar pessoas físicas e jurídicas de direito privado.
Hoje, qualquer cidadão ou empresa pode ter sua vida financeira destruída por acusações de crimes de opinião, e se procurar se defender, encontrará uma luta desproporcional, pois não é mais privado versus privado, é o estado contra ele, normalmente provocado por entidades não governamentais.
Esse modelo é, provavelmente, o mais desproporcional contra a sociedade civil, pois quem é processado, enfrenta um oponente com recursos ilimitados. O estado pode passar décadas processando, e não há custo, pois os salários serão pagos pelo orçamento e, se o estado vencer, os advogados públicos receberão os honorários de sucumbência, se perder, não terá perdido nada. Porém, o ente privado não tem recursos ilimitados, e vai ser obrigado a considerar um acordo o quanto antes, pois é a única forma de enfrentar a desproporcionalidade. E mesmo que vença ao final de anos, terá gasto milhões com advogados privados.
E a entidade privada (ONG) que provocou a justiça, também não paga praticamente nada para ver seu direito de petição ser levado adiante pelo Estado, contra quem ela considera um inimigo. E, ao final, as multas pagas aos fundos de direitos difusos, voltam para outras ONGs em forma de doação para defesa desses direitos.
Uma história curiosa ilustra esse caso. Recentemente houve uma condenação por trabalho escravo no campo, em vinícolas, gerando uma indenização de 7 milhões de reais[1]. Desse dinheiro, 2 milhões foram para o bolso dos que foram escravizados, e os 5 milhões restantes, destinados para serem usados de acordo com a definição do judiciário. O irônico é que, um advogado privado teria ficado com, no máximo, 30% de honorários.
De, talvez, uns 10 anos para cá, com algum combustível trazido pelas redes sociais, a impressão é que determinados posicionamentos políticos, sociais e religiosos são criminalizados de forma desproporcional, conferindo os tais “superpoderes civis” aos grupos que estão comemorando e instrumentalizando essa criminalização.
Pessoas sendo presas por rezarem sozinhas em frente a clínicas de aborto, por usarem a bandeira britânica, por trocarem pronomes, ou por se recusarem a usar o pronome de escolha do grupo que detém o superpoder civil.
Na hierarquia do liberalismo, entendo que os direitos civis iguais na letra da lei foram o ápice. Mesmo o desequilíbrio artificial (ações afirmativas) para favorecer economicamente, e em termos de representação social, os grupos historicamente desfavorecidos, foi razoavelmente bem aceito, pois dialogava com a empatia de querer ver o seu próximo em boa situação social e econômica.
Mas esse modelo de superpoderes civis não encontra nenhuma relação com nenhum tipo de liberalismo. Na verdade, encontra paralelo com regimes totalitários e até com o que foi enfrentado pelos próprios ativistas de direitos civis, que eram os superpoderes civis que o grupo hegemônico detinha. E isso, em minha opinião, consegue explicar a crescente polarização e a violência política.
No passado, pessoas de etnias perseguidas iam para a cadeia sem o devido processo legal, e sofriam desproporcionalmente a perseguição estatal e da sociedade civil intolerante. Parece que estamos recriando o mesmo problema que resolvemos nas décadas de 1960 e 1970. Só que, agora, com sinal invertido, contra um grupo considerado privilegiado.
[1][1] Ver https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2023-03/vinicolas-devem-pagar-r-7-milhoes-por-caso-de-trabalho-escravo-no-rs, consultado em 16/9/2025.