𝗔 𝗘𝗥𝗔 𝗗𝗔 𝗧𝗥𝗔𝗠𝗣𝗨𝗟Ê𝗡𝗖𝗜𝗔: 𝗢 𝗠𝗨𝗡𝗗𝗢 𝗦𝗘𝗡𝗗𝗢 𝗥𝗘𝗢𝗥𝗚𝗔𝗡𝗜𝗭𝗔𝗗𝗢 𝗘𝗠 𝟮𝟬𝟮𝟱 – Por Guilherme Azevedo
Imagine o mundo como uma máquina gigante. Daquelas complexas, com engrenagens, fios e sensores. Durante décadas, os Estados Unidos foram o motor principal. E agora parece que algo range, solta faísca, ameaça travar. E quando o motor maior engasga, o resto da engrenagem sente. Em 2025, estamos diante de um momento de reorganização. Um daqueles instantes em que as placas tectônicas da história se movem, silenciosas a princípio, mas logo gerando terremotos. Diagnósticos convergem para um mesmo alerta: o século XXI entrou em sua fase de descompressão hegemônica.
O novo governo Trump não é uma repetição do anterior. É uma versão mais disciplinada, mais organizada e, sobretudo, mais agressiva. Com Scott Bessent à frente da equipe econômica, a Casa Branca inicia um ajuste fiscal ortodoxo. Mas, ao invés de elevar impostos ou cortar programas sociais opta por cortar desperdícios — especialmente por meio das ações do DOGE de Elon Musk — e por uma solução “criativa”: transformar tarifas de importação em instrumento de arrecadação e negociação (para alguns, coerção) geopolítica.
Desde antes do início de seu mandato, em 20 de janeiro de 2025, Trump vem anunciando que imporá tarifas de importação sobre países que exportam para os EUA. Desde sua posse, ameaças e anúncios se avolumam:
- em 26 de janeiro, ameaçou a Colômbia com tarifas de 25%, depois recuou;
- em 1º de fevereiro, anunciou 25% de tarifa sobre México e Canadá, sob a justificativa de que os vizinhos eram responsáveis pela imigração ilegal e a entrada de drogas ilícitas nos EUA;
- na mesma ocasião, anunciou tarifa de 10% sobre produtos da China;
- em 3 de fevereiro, pausou por 30 dias as tarifas contra México e Canadá e em 5 de março concedeu mais um mês de isenção;
- em 4 de fevereiro, entraram em vigor as tarifas de 10% contra a China, que retaliou e anunciou tarifas de 10 a 15%, as quais entraram em vigor dia 10 de fevereiro;
- em 4 de março, Trump disse que o Brasil cobra taxas maiores que os EUA sobre o Etanol;
- em 12 de março, iniciou a cobrança de tarifa de 25% sobre a importação de aço e alumínio;
- no dia seguinte, ameaçou a União Europeia com tarifas de 200% sobre as bebidas caso o Whisky americano fosse taxado;
- em 25 de março, aplicou 25% de tarifas a todos os países que comprarem petróleo e gás da Venezuela;
- no mesmo dia, anunciou 25% de tarifa sobre importações de carros;
- em 2 de abril, dia batizado pelo governo Trump como “Liberation Day” (“Dia da Libertação”, em português), foi anunciado o pacote de tarifas de importação dos EUA sobre diversos países[1];
- em 9 de abril, Trump anunciou pausa de 90 dias sobre as tarifas anunciadas no “Dia da Libertação” e que todos os países que não retaliaram teriam seus produtos taxados em 10%, já a China, que retaliou, teria um aumento da tarifa de seus produtos para 125%[2];
- em 16 de abril, a Casa Branca divulgou documento constando que a tarifa sobre alguns produtos chineses pode chegar a 245%[3].
O objetivo declarado? Forçar parceiros a renegociar termos de comércio, pressionar pela relocalização industrial e arrecadar mais sem mexer na renda do eleitor americano. O objetivo implícito? Manter a superioridade militar e garantir a segurança do povo americano. Passados dois meses desde o início do movimentado segundo mandato de Trump, até o momento em que esse artigo é escrito, a mensagem que ficou clara é que o principal inimigo comercial dos EUA é a China e que, talvez, o objetivo, desde o início, fosse abrir guerra comercial contra o gigante asiático e negociação tarifária com os demais países.
É importante destacar que política comercial possui particularidades e armadilhas. Tecnicamente, especialistas sustentam que tarifas até 12% funcionam como uma espécie de IVA disfarçado — imposto sobre o consumo parcialmente absorvido pelas margens das empresas exportadoras. Mas acima disso elas geram estagflação: preços sobem, consumo cai, e a economia patina. A equipe econômica de Trump certamente sabe disso. O “tarifaço” imposto por Trump, o qual foi suspenso por 90 dias, por um lado, visa arrecadar bilhões de dólares por ano para cobrir parte do déficit primário, mas, por outro, pressiona cadeias produtivas, desvaloriza o dólar, reduz a poupança e atinge a confiança dos mercados — cujo “VIX” (índice do medo) disparou[4], indicando risco sistêmico.
O cenário é de incerteza e o mundo inteiro está aflito com as decisões que vêm sendo tomadas na Casa Branca. Até mesmo os conflitos bélicos em curso na Europa e no Oriente Médio se tornaram secundários na disputa por espaço dentre as principais manchetes frente à avalanche de notícias econômicas oriundas do governo de Donald Trump. Diante desse contexto, este artigo: (i) apresentará perspectivas de quatro profissionais de áreas distintas — um diplomata, um professor de ciência política, um financista e um empresário conhecedor da China — sobre o atual cenário; (ii) trará os principais argumentos e conclusões extraídas dos livros mais influentes sobre ascensão e queda de superpotências; e (iii) proporá uma reflexão sobre variáveis, visíveis e invisíveis, que estão em jogo nessa “disputa” entre nações.
O diplomata: geopolítica como negociação imobiliária[5]
Segundo o economista, diplomata e ex-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, Marcos Troyjo, o mundo atravessa uma fase de “trampulência” — neologismo que ele propõe para descrever um estado híbrido entre turbulência econômica e disrupção geopolítica. A combinação entre uma potência que volta a afirmar sua musculatura econômica e uma diplomacia de confronto cria uma lógica internacional com implicações estruturais para a ordem global.
Para Troyjo, Trump opera hoje com uma vantagem que não teve em seu primeiro mandato: o domínio das engrenagens da máquina pública. Ele dispõe de uma equipe coesa, selecionada por critérios de lealdade ideológica, e de apoio parlamentar robusto tanto na Câmara quanto no Senado. Isso permite à atual administração americana aplicar, de forma rápida e ampla, um programa de reindustrialização voltado à competitividade doméstica. No entanto, essa agenda convive com uma política comercial externa agressiva e por vezes incoerente, o que gera fricções econômicas, estratégicas e diplomáticas em cadeia.
Internamente, a proposta do governo se ancora em pilares como desregulamentação, desburocratização e uma política de energia barata voltada à indústria — “drill, baby, drill”. Soma-se a isso a proposta de redução da carga tributária corporativa de 21% para 15%, tornando os EUA mais atrativos até mesmo do que economias emergentes. Troyjo menciona, como evidência do entusiasmo gerado, a declaração do bilionário francês Bernard Arnault, que, após participar da cerimônia de posse de Trump, afirmou publicamente que os EUA se tornaram o ambiente mais promissor do mundo para os negócios.
O problema, entretanto, reside na política comercial. Ao adotar uma postura protecionista e punitiva, com elevação generalizada de tarifas, o governo entra em contradição com os próprios objetivos de liberalização econômica doméstica. Como argumenta Troyjo, é como se a política interna fosse inspirada por Milton Friedman, e a política comercial por um manual da CEPAL dos anos 60 — marcada por intervencionismo, nacionalismo econômico e substituição de importações.
Essa dissonância causa confusão estratégica, especialmente para as corporações multinacionais americanas. Muitas delas operam em redes globais de produção com plantas espalhadas em países como China, Índia, México e Malásia. A imposição de tarifas e a exigência de relocalização industrial nos EUA gera dois impactos imediatos: desvalorização patrimonial dos investimentos feitos nos últimos anos e necessidade de novos aportes de capital para reorganizar as cadeias produtivas. Isso afeta lucros, dividendos e desempenho em bolsa. Troyjo exemplifica com o caso hipotético (mas verossímil) de uma empresa de calçados da costa oeste americana que, após diversificar sua produção global, enfrenta agora pressão para verticalizar operações no território nacional, algo custoso e logisticamente desafiador.
No plano internacional, a principal antagonista dos EUA continua sendo a China. Troyjo reconhece que, mesmo diante de um pacote tarifário, os chineses conseguem preservar competitividade em setores-chave, especialmente com o auxílio de uma desvalorização cambial estratégica. O governo de Pequim adota uma postura pragmática: em vez de reagir frontalmente, escolhe os pontos mais sensíveis da política americana para retaliar. Um exemplo é o agronegócio — setor com forte representação política nos EUA —, onde Pequim impôs restrições à importação de soja, milho, carne bovina e suína. Trata-se de uma retaliação seletiva, desenhada para gerar impacto político interno em Washington.
Mais que isso, observa-se um realinhamento diplomático relevante. Países historicamente rivais, como China, Japão e Coreia do Sul, voltam a dialogar. A União Europeia, após um ano de relações tensas com a China, também retomou as negociações e iniciou missões bilaterais de alto nível. Segundo Troyjo, o mundo vive um paradoxo geopolítico que ele descreve de forma simbólica: “dois bicudos voltaram a se beijar”. O isolacionismo americano cria, portanto, novas avenidas de comércio e cooperação entre países que antes atuavam de forma fragmentada.
O uso sistemático de tarifas como instrumento de negociação, embora tecnicamente legítimo, traz efeitos colaterais preocupantes. Troyjo alerta para o risco de subinvestimento global, pois investidores hesitam em alocar capital em ambientes de alta instabilidade regulatória. Além disso, o efeito “Pedro e o Lobo” passa a se manifestar: ameaças constantes reduzem a credibilidade futura do negociador. Tarifas podem, assim, perder eficácia política mesmo antes de surtirem efeitos econômicos.
Por fim, Troyjo reflete sobre os impactos da atual política externa sobre o poder americano. Ele distingue três dimensões: hard power (militar), money power (capacidade econômica) e soft power (influência cultural e institucional). Na primeira, os EUA permanecem intactos. Na segunda, podem ser levemente afetados, mas compensam isso com reformas internas. É na terceira dimensão, porém, que o dano é mais visível: os EUA estão perdendo influência simbólica no mundo. E, segundo Troyjo, o mais preocupante é que esse vácuo não está sendo ocupado por outras potências ou modelos alternativos — ele está sendo ocupado pelo vazio.
Essa perda de soft power não apenas mina a capacidade dos EUA de liderar a ordem internacional, mas alimenta um cenário global de incerteza, fragmentação e transição indefinida. Para Troyjo, portanto, o maior risco da atual política americana não é a guerra comercial em si, mas o fato de ela sinalizar ao mundo que os Estados Unidos não desejam mais ocupar o papel de referência internacional. E isso, mais do que tarifas ou recessões, é o que pode redesenhar de forma duradoura o século XXI.
O professor: apocalipse como diagnóstico e método[6]
A análise proposta pelo cientista político, professor e palestrante Heni Ozi Cukier, conhecido como Professor HOC, parte do reconhecimento acurado de um desequilíbrio estrutural na economia global, cujas raízes estão na assimetria entre países superavitários — como China, Alemanha, Japão e Coreia do Sul — e países deficitários, como os Estados Unidos e outros integrantes do bloco anglo-saxão. O cerne da questão reside não nas tarifas em si, mas nas políticas industriais não-tarifárias que, ao promoverem subsídios internos e transferências de renda para o setor produtivo, geram capacidade industrial desproporcional ao consumo doméstico. Tal modelo implica na necessidade compulsória de exportações em grande escala, criando um ciclo de dependência em relação ao consumo externo, especialmente norte-americano. Assim, os países deficitários absorvem não apenas mercadorias, mas também o excesso de poupança dessas nações, o que alimenta déficits fiscais e comerciais nos EUA, além de endividamento familiar e desemprego setorial, particularmente na indústria manufatureira.
Neste cenário, a leitura da administração Trump de 2025 acerta ao diagnosticar o problema: a desindustrialização americana não é apenas um desafio econômico, mas uma vulnerabilidade geopolítica. Como destaca HOC, a indústria é pilar estratégico para a manutenção da primazia tecnológica e da capacidade bélica de uma superpotência. A erosão desse setor não compromete apenas os fundamentos da economia americana, mas ameaça sua segurança nacional e seu status hegemônico. A recuperação do setor manufatureiro, portanto, transcende o plano produtivo, articulando-se como questão de soberania.
Contudo, se o diagnóstico é acertado, o remédio proposto revela-se equivocado. O plano de Trump, inspirado no Acordo do Plaza de 1985, busca coordenar uma desvalorização do dólar com apoio de aliados. A intenção é reequilibrar o comércio exterior e recuperar competitividade industrial, mas a estratégia desconsidera as dinâmicas do chamado “dilema de Triffin”. Como moeda de reserva internacional, o dólar é, simultaneamente, instrumento de poder e fonte de fragilidade. A atratividade da moeda americana impõe à economia dos EUA o papel de absorver liquidez global, o que, por sua vez, alimenta déficits crônicos e mantém o dólar sobrevalorizado. Desvalorizar a moeda sem renunciar a seu status hegemônico é, portanto, uma contradição em termos.
A tentativa de replicar a lógica do “Plaza Accord” via o chamado “Mar-a-Lago Accord”, em um contexto multipolar e sem o capital diplomático necessário, revela a limitação fundamental da abordagem trumpista. A forma com que Trump busca impor sua agenda — por meio de tarifas generalizadas, retóricas beligerantes e isolamento estratégico — compromete os fundamentos de confiança sobre os quais se apoia o sistema internacional ancorado no dólar. O uso das tarifas como instrumento de barganha, em vez de instrumento técnico de negociação multilateral, foi não apenas ineficaz como contraproducente: causou fuga de capitais dos títulos do Tesouro americano e abriu um flanco perigoso para o colapso da confiança no sistema financeiro dos EUA.
Além disso, a forma como o poder foi exercido — de maneira unilateral, desproporcional e imprevisível — compromete a capacidade dos EUA de construir as coalizões necessárias para enfrentar os desequilíbrios globais. Ao antagonizar aliados históricos como Canadá, Europa e Japão, Trump minou a própria base de apoio necessária para isolar a China. O efeito colateral é duplo: por um lado, o dólar torna-se menos atrativo como reserva de valor; por outro, a China é estimulada a aprofundar sua desdolarização, fortalecer sua capacidade autárquica e testar os limites da contenção americana, inclusive no plano militar.
A China, por sua vez, demonstra clara preparação para essa confrontação: aumento significativo de suas reservas em ouro, incentivo à utilização do yuan em transações internacionais e resistência articulada às tentativas de contenção impostas pelos EUA. O resultado é uma escalada de tensões que transcende o âmbito comercial e aponta para um cenário de crescente instabilidade sistêmica. A fragilização do dólar como âncora do sistema internacional, quando combinada com o colapso das alianças ocidentais, configura um ambiente propício a mudanças abruptas na ordem global — com riscos reais de conflito aberto.
Em suma, a atual estratégia de Donald Trump expõe uma contradição incontornável: ao tentar corrigir uma distorção estrutural da economia global por meio de medidas unilaterais e retóricas de confronto, ele compromete os mesmos pilares que sustentam o poderio americano. Ao mesmo tempo em que acerta ao reconhecer a urgência da questão industrial e a necessidade de reequilibrar o sistema global, falha ao negligenciar a complexidade das interdependências que moldam o sistema financeiro internacional. O resultado é uma política externa disfuncional, que amplifica os riscos sistêmicos e compromete a liderança americana em um momento de inflexão geopolítica crítica.
O financista: colapso silencioso da excepcionalidade americana[7]
O retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos em 2025 trouxe à tona uma nova fase da política econômica americana, marcada por rupturas que sinalizam não apenas uma inflexão interna, mas o colapso gradual do que durante décadas foi entendido como “excepcionalismo americano”. A expressão, frequentemente associada à supremacia tecnológica, à robustez institucional e ao dinamismo financeiro dos EUA, passa a ser reavaliada a partir das análises de Gustavo Medeiros, head de Global Macro Research na gestora de investimentos Ashmore. Com base em modelagens empíricas e séries históricas extensas, Medeiros argumenta que o desempenho superior dos ativos e corporações americanas, especialmente após 2017, foi menos uma consequência de méritos estruturais do capitalismo norte-americano e mais um efeito colateral de políticas fiscais profundamente pró-cíclicas, ancoradas no voluntarismo político e em déficits sistematicamente elevados.
O ponto de inflexão, segundo Medeiros, encontra-se na aprovação do Tax Cuts and Jobs Act ainda na primeira administração Trump. Ao reduzir significativamente a alíquota do imposto corporativo de 36% para 21%, o governo produziu uma distorção de base: um aumento do lucro líquido das empresas, sem contrapartida em produtividade ou inovação, artificialmente inflando os ganhos por ação (EPS) e, por consequência, os múltiplos de avaliação do S&P 500. Essa engrenagem, alimentada pela manutenção de gastos públicos elevados tanto sob Trump quanto sob Biden — este último através de estímulos diretos durante e após a pandemia —, resultou numa média de 5,5% do PIB em déficit primário anual durante oito anos. Calculado de forma acumulada, esse excesso de gasto público alcançou a cifra impressionante de 13 trilhões de dólares — número que, segundo Medeiros, coincide com o excesso de capitalização do mercado acionário americano quando comparado a uma projeção baseada em tendências de longo prazo de lucros e múltiplos.
Essa simetria entre o desvio fiscal e a valorização excessiva dos ativos financeiros americanos sustenta a tese de que a excepcionalidade recente foi financiada por uma expansão irresponsável do balanço público, não por fundamentos estruturais. Esse modelo, no entanto, se esgota em 2025. Diante do aumento do custo de rolagem da dívida — com o Tesouro americano precisando refinanciar até 10 trilhões de dólares por ano — e da perda de capacidade do sistema financeiro em absorver tamanha emissão, o novo governo Trump é forçado a pivotar em direção a uma política de consolidação fiscal. Ao contrário do que muitos analistas esperavam, o núcleo econômico da nova administração, liderado por Scott Bessent, reconhece a insustentabilidade do status quo e inicia um ajuste de natureza ortodoxa, ainda que envolto em retórica protecionista.
Nesse contexto, as tarifas comerciais assumem protagonismo. Ao anunciar aumentos tarifários que elevaram a alíquota média de importação de 3,7% para cerca de 22%, o governo Trump não apenas acena com um novo protecionismo, como transforma o instrumento tarifário em ferramenta fiscal. Medeiros interpreta essas tarifas sob dois prismas: abaixo de 12%, funcionam como substitutos de um imposto sobre o consumo (semelhante a um VAT ou IVA), incidindo parcialmente sobre margens externas e internas, e com impacto inflacionário moderado; acima de 12%, tornam-se danosas, comprimindo consumo, pressionando preços e provocando estagflação. Seu diagnóstico é claro: a estrutura tarifária é, em grande parte, uma tática de negociação — um “tarifaço de blefe” —, voltado a extrair concessões comerciais e geopolíticas de aliados e rivais, não a inaugurar uma autarquia econômica americana.
Contudo, o excesso de ruído e a dimensão do choque tarifário aceleram o processo de reprecificação dos mercados. O fluxo de capital começa a migrar para Europa, China e países emergentes. A Alemanha, por exemplo, abandona sua histórica ortodoxia fiscal e anuncia um pacote de estímulo na ordem de um trilhão de euros, com foco em defesa e infraestrutura energética. O multiplicador fiscal estimado para esse tipo de gasto varia entre 1,5 e 2,5, implicando uma aceleração significativa do PIB nominal europeu. A China, por sua vez, fortalece sua transição para um modelo de crescimento baseado em consumo interno e inovação tecnológica, com aumento dos gastos públicos e maior protagonismo de empresas nacionais em setores estratégicos, como semicondutores, carros elétricos e inteligência artificial. O yuan, pressionado por anos de fuga de capitais, tende à valorização à medida que o consumo doméstico se expande e a dependência de superávits comerciais se reduz.
Nesse rearranjo, a desvalorização do dólar torna-se não apenas esperada, mas necessária para o reequilíbrio das contas globais. Com o diferencial de juros se estreitando — dado o ajuste fiscal americano e a expansão europeia —, as moedas do Velho Mundo e do Leste Asiático ganham espaço. Medeiros sugere, por exemplo, que o euro poderia se valorizar até o patamar de 1,30–1,40 frente ao dólar nos próximos dois anos, revertendo o ciclo de apreciação do dólar que vigorou ao longo da última década. O reequilíbrio não se dá apenas por fluxos financeiros, mas também por uma redefinição dos termos de troca globais, com novas agendas de reindustrialização, valorização cambial e redistribuição tecnológica emergindo em contraposição ao modelo rentista e financeirizado do pós-crise de 2008.
Essa mutação sistêmica tem implicações diretas para os mercados emergentes. Medeiros observa que países que conseguirem investir em infraestrutura, qualificação da mão de obra e geração de energia eficiente — pré-condições para a superação da armadilha da renda média — poderão se inserir em cadeias globais de valor com maior sofisticação. A China já executa esse modelo, elevando sua base de engenheiros formados, ampliando sua capacidade de pesquisa e desenvolvimento e passando a disputar mercados com produtos de alta tecnologia, inclusive na aviação civil. Para os demais emergentes, o desafio é claro: romper com a especialização em bens primários e ampliar a densidade tecnológica de suas exportações. O Brasil, por exemplo, precisaria multiplicar casos como o da Embraer para sair da periferia global.
A emergência de um novo equilíbrio multipolar, portanto, torna o excepcionalismo americano não apenas obsoleto, mas inviável. A política externa de Trump — baseada em tarifas, chantagem comercial e isolamento — não pode mais ser sustentada sem comprometer o dinamismo da economia interna. O “poder de barganha” dos EUA passa a depender menos da sua capacidade coercitiva e mais da sua disposição para cooperar, renegociar compromissos fiscais e integrar-se a uma nova ordem econômica baseada em interdependência estratégica. Nesse tabuleiro, os movimentos fiscais e cambiais deixam de ser apenas indicadores de política doméstica e passam a ser peças centrais de um novo jogo geoeconômico.
O empresário: a resiliência silenciosa da China[8]
A disputa comercial entre Estados Unidos e China transcende tarifas e barreiras alfandegárias: ela representa uma batalha pela primazia tecnológica, energética e geopolítica do século XXI. José Ricardo, CEO do LIDE China, oferece uma leitura sobre os vetores dessa disputa, revelando as múltiplas vantagens que a China vem acumulando ao longo das últimas décadas — vantagens estas muitas vezes subestimadas no debate ocidental.
As vantagens comparativas da China na atual guerra comercial com os Estados Unidos não são meramente circunstanciais ou resultantes de mão de obra barata — são estruturais, construídas com planejamento de longo prazo, coordenação centralizada e reinvestimento sistemático de superávits comerciais em áreas estratégicas. José Ricardo enfatiza que essas vantagens se manifestam em diversas frentes que, combinadas, formam um ecossistema de competitividade difícil de ser replicado no Ocidente.
Em primeiro lugar, destaca-se a capacidade industrial massiva e integrada. A China consolidou-se como o coração da manufatura global, controlando boa parte das cadeias produtivas de bens industriais, de consumo e de alta tecnologia. Enquanto os EUA terceirizaram sua base produtiva desde os anos 1980, a China verticalizou a sua: controla desde a extração de matérias-primas (como o lítio e as terras raras) até a montagem final de produtos eletrônicos, passando por toda a cadeia intermediária — o que reduz custos, riscos logísticos e dependência de terceiros. O país asiático tornou-se responsável por cerca de 30% da produção industrial mundial, ante 16% dos Estados Unidos. Essa dominância manufatureira permitiu à China escalar rapidamente em setores estratégicos como veículos elétricos, energia solar e semicondutores.
A segunda vantagem está na escala e velocidade de implementação tecnológica. A China não apenas investe pesado em pesquisa e desenvolvimento (R&D), mas também consegue aplicar resultados rapidamente graças à articulação entre governo, empresas e universidades. Com mais de 70 mil patentes registradas por ano, o país lidera em registros de propriedade intelectual em setores como telecomunicações (5G), inteligência artificial, drones, robótica e big data, tendo ultrapassado os Estados Unidos desde 2019. Além disso, cerca de 55% dos investimentos mundiais em inteligência artificial em 2022 foram direcionados a empresas chinesas, refletindo o compromisso estatal com tecnologias emergentes. José Ricardo destaca que o governo chinês atua como catalisador desses investimentos, coordenando políticas públicas, financiamento e educação técnica — algo que os Estados Unidos, que adota um modelo mais descentralizado e orientado pelo mercado, têm dificuldade em igualar. Esse ritmo de inovação é sustentado por uma população urbana altamente conectada e um mercado interno com mais de 1,4 bilhão de consumidores — ideal para testes, ajustes e escalonamento de novos produtos.
Terceiro ponto: a centralização estratégica do Estado permite à China agir com uma racionalidade sistêmica que falta ao modelo liberal ocidental. Segundo José Ricardo, através de planos quinquenais e metas setoriais, o governo chinês coordena ações de longo prazo com previsibilidade e continuidade — algo impensável em democracias fragmentadas por ciclos eleitorais curtos. Isso tem implicações diretas, por exemplo, na política industrial: ao contrário do laissez-faire norte-americano, a China atua como sócio direto no financiamento e na gestão de conglomerados estratégicos, como a Huawei, a CATL (líder em baterias) e a BYD (veículos elétricos).
Outro diferencial fundamental é a dominância nos insumos do futuro energético. A China controla mais de 80% da capacidade global de refino de terras raras, insumos essenciais para componentes eletrônicos, motores de precisão, turbinas eólicas e painéis solares. Além disso, lidera em capacidade instalada de energia solar e eólica, e detém 80% da cadeia global de refino de lítio (extrai, refina, fabrica células e monta os sistemas), insumo vital para baterias de carros elétricos e armazenamento de energia. Essa vantagem confere poder não apenas industrial, mas geopolítico — pois permite à China condicionar o acesso desses insumos aos seus interesses diplomáticos e comerciais. Resultado, suas empresas dominam cerca de 60% da produção global de veículos elétricos — uma vantagem industrial com implicações ambientais, comerciais e diplomáticas.
Por fim, José Ricardo chama atenção para o uso estratégico da diplomacia econômica chinesa. Com a Nova Rota da Seda, o país já comprometeu mais de US$ 1 trilhão em investimentos em infraestrutura em mais de 140 países. Essa iniciativa cria não só dependência econômica, mas também alianças políticas que favorecem o comércio, o acesso a recursos e a consolidação de zonas de influência.
Além disso, acordos bilaterais — como os firmados com o Brasil — permitem à China contornar o sistema financeiro ocidental baseado no dólar, promovendo o uso do yuan como moeda de troca. A China já é o maior parceiro comercial do Brasil, com trocas que superaram US$ 150 bilhões em 2023. José Ricardo observa que o país asiático não apenas compra soja, minério e carne, mas também investe em infraestrutura, energia e até inovação — setores estratégicos para o desenvolvimento brasileiro. Ele sugere que o Brasil pode atuar como elo entre Ocidente e Oriente, desde que elabore uma estratégia nacional clara e pragmática, capaz de extrair ganhos duradouros dessa competição sistêmica.
Diante de tudo isso, as vantagens comparativas da China não residem apenas em fatores isolados como mão de obra ou subsídios, mas em um arranjo estrutural que combina escala produtiva, comando estratégico, inovação acelerada, domínio de insumos críticos e diplomacia econômica expansiva. O modelo chinês, mesmo que controverso aos olhos ocidentais, tem mostrado uma eficácia contundente na disputa global por influência econômica e tecnológica. Para José Ricardo, não há um “vencedor absoluto” nesta guerra comercial, mas sim uma mudança de eixo. A China não busca reproduzir o modelo norte-americano; ao contrário, molda um novo paradigma em que planejamento estatal, eficiência produtiva e projeção geoeconômica caminham juntos. Para países em desenvolvimento como o Brasil, compreender essa transformação não é apenas uma questão de análise — é um imperativo estratégico.
Do apogeu à adaptação: o que os livros nos ensinam
A compreensão das dinâmicas de ascensão e queda das grandes potências internacionais tem sido objeto de análise em diversas disciplinas — da história à economia política, da geografia à teoria institucional. Quatro obras contemporâneas se destacam, tanto pelo impacto intelectual quanto pela profundidade analítica, ao abordarem esse fenômeno sob óticas distintas: The Rise and Fall of the Great Powers (1987), de Paul Kennedy; Guns, Germs and Steel (1997), de Jared Diamond; Why Nations Fail (2012), de Daron Acemoglu e James A. Robinson; e Principles for Dealing with the Changing World Order (2021), de Ray Dalio. Ainda que cada autor privilegie um conjunto específico de variáveis explicativas — geopolíticas, ambientais, institucionais ou financeiras —, suas análises podem ser integradas em uma leitura plural, capaz de oferecer um quadro denso das forças que moldam a longevidade ou o colapso das potências globais.
Publicado em 1987, The Rise and Fall of the Great Powers, de Paul Kennedy, representa uma leitura histórica de longa duração, que vincula o destino das potências à relação entre recursos econômicos e projeção militar. O autor sustenta que as nações ascendem quando sua base produtiva sustenta seus compromissos geoestratégicos, e declinam quando o poderio militar consome mais do que o orçamento consegue pagar — fenômeno que denomina imperial overstretch. Analisando o período de 1500 a 1980, Kennedy mostra como potências como a Espanha, a França e o Reino Unido entraram em decadência não por derrotas pontuais, mas por acumular desequilíbrios entre ambição imperial e sustentação material. A análise culmina em um alerta sobre o futuro dos Estados Unidos, cuja política de gastos militares, à época da Guerra Fria, já revelava sinais de sobrecarga estrutural.
Dez anos depois, em Guns, Germs and Steel (1997), Jared Diamond desloca o eixo analítico da geopolítica para a ecologia histórica. Sua tese é que a distribuição desigual de poder entre as civilizações se explica, sobretudo, por fatores geográficos e ambientais — não por diferenças raciais, culturais ou intelectuais. Sociedades que surgiram em regiões com maior disponibilidade de plantas e animais domesticáveis, como a Eurásia, tiveram vantagens iniciais no desenvolvimento da agricultura, da densidade populacional, da resistência a doenças infecciosas e da complexificação social. O eixo leste-oeste do continente eurasiático, por sua vez, facilitou a difusão de tecnologias e práticas culturais. Essas condições estruturais permitiram que civilizações eurasiáticas acumulassem poder material e dominassem outras regiões do mundo. Ainda que Diamond não se dedique ao estudo das potências modernas, sua obra fornece os fundamentos ambientais que ajudam a compreender por que determinadas sociedades partiram com vantagens históricas acumulativas.
Em Why Nations Fail: The Origins of Power, Prosperity, and Poverty (2012), Daron Acemoglu e James A. Robinson oferecem uma resposta institucional ao mesmo problema. Rejeitando tanto o determinismo geográfico quanto o cultural, os autores argumentam que a prosperidade depende da existência de instituições políticas e econômicas inclusivas — aquelas que garantem direitos de propriedade, pluralismo, liberdade de mercado e participação ampla no processo decisório. Em contraste, instituições extrativas concentram poder e riqueza, restringem a inovação e bloqueiam a mobilidade social. Para os autores, a história econômica do mundo é marcada por uma luta constante entre esses dois modelos institucionais. Casos emblemáticos como a diferença entre as Coreias, ou o contraste entre Botsuana e Zimbábue, ilustram como trajetórias radicalmente distintas emergem de contextos institucionais divergentes, mesmo sob condições geográficas e culturais semelhantes. A estabilidade e o crescimento de longo prazo, segundo essa perspectiva, dependem da capacidade de uma sociedade criar e preservar regras do jogo que equilibrem o poder político e assegurem a destruição criativa.
Finalmente, Principles for Dealing with the Changing World Order: Why Nations Succeed and Fail (2021), de Ray Dalio, parte de um olhar cíclico e financeiro para explicar a transição entre potências hegemônicas. Valendo-se de uma vasta base de dados históricos e econômicos, Dalio propõe que os impérios seguem um padrão recorrente: ascendem por meio da produtividade e da disciplina fiscal, atingem o auge com uma moeda forte e influência global, e declinam quando acumulam dívidas, imprimem dinheiro em excesso, perdem coesão social e enfrentam desafios internos e externos. Seu modelo identifica 18 indicadores que sinalizam a fase de uma potência dentro desse ciclo, o que lhe permite afirmar que os Estados Unidos, hoje, estão em declínio relativo, enquanto a China avança em trajetória de ascensão. A obra não é apenas diagnóstica: ela sugere estratégias de adaptação — como diversificação de ativos e compreensão da lógica dos ciclos — para enfrentar um período de grande instabilidade e reorganização global. A abordagem de Dalio se distingue por conciliar análise sistêmica com aplicação prática no campo das finanças, da política e da segurança.
Apesar das diferenças metodológicas e disciplinares, essas quatro obras convergem em pontos cruciais. Todas rejeitam explicações simplistas ou fatalistas e insistem que o sucesso das nações é resultado de estruturas acumuladas, decisões estratégicas e variáveis interdependentes. Há consenso quanto ao fato de que a ascensão de uma potência não é garantida, nem tampouco seu declínio é súbito ou inevitável: trata-se de processos históricos que se desenvolvem ao longo de décadas, com sinais claros, ainda que muitas vezes ignorados.
As divergências, contudo, são relevantes. Kennedy e Dalio enfatizam o papel do equilíbrio fiscal e da base produtiva como sustentáculo da força nacional, ainda que Dalio vá além ao quantificar os ciclos e conectar variáveis econômicas contemporâneas. Diamond propõe uma leitura ecológica de longo prazo, afirmando que as vantagens materiais iniciais definiram o desfecho de muitos encontros históricos — especialmente no contexto da colonização. Já Acemoglu e Robinson inserem a política no centro do debate, sustentando que as instituições moldam os incentivos e determinam se os recursos de uma sociedade serão bem utilizados ou desperdiçados em benefício de elites predatórias.
Em síntese, as quatro obras, quando reunidas, oferecem uma análise plural, robusta e complementar dos elementos que estruturam o poder global. Enquanto cada uma isola uma variável dominante — poder econômico, geografia, instituições ou ciclos financeiros —, juntas elas revelam que a trajetória de uma superpotência não pode ser explicada por um único fator, mas sim por uma matriz complexa em que economia, ambiente, política e estratégia se entrelaçam para definir o destino das nações.
O que se vê e o que não se vê: reflexões econômicas e geopolíticas
No que diz respeito à guerra comercial, enquanto EUA parece jogar poker, a China joga xadrez. Diante da nova política tarifária do governo Trump, Pequim registrou queixa na Organização Mundial do Comércio (OMC)[9], e vêm aplicando retaliação tarifária e estratégica, onde dói mais nos EUA — por ora, os setores do agronegócio, o aeronáutico e de terras raras. Em 15 de abril, Pequim ordenou a suspensão da compra de jatos da Cia americana Boeing[10]. Em 17 de abril, o governo dos EUA anunciou restrição de exportação de chips para a China[11], que, em resposta, anunciou a criação de controles de exportação sobre uma série de minerais críticos, denominados terras raras[12], o que representa um golpe considerável para os Estados Unidos que dependem desses minerais, usados em diversos processos de fabricação, especialmente em produtos de alta tecnologia, como carros elétricos, turbinas eólicas, e equipamentos eletrônicos.
A China é acusada de impor concorrência desleal aos demais países, utilizando diversas barreiras não-tarifárias para controlar o comércio internacional, incluindo: licenças de importação e exportação; restrições de quantidade (cotas); regulamentações técnicas e sanitárias; restrições de propriedade intelectual; desvalorização cambial; e expansão fiscal direcionada. Além disso, enquanto a maioria dos desenvolvidos e em desenvolvimento adota jornada de trabalho entre 35 e 44 horas semanais, a China apoiou suas altas taxas de crescimento econômico no chamado cronograma 996, com jornada de trabalho das 9h às 21h, 6 dias por semana. E impõe restrição à imigração interna e, consequentemente, à mobilidade social.
Foi sob esse modelo que a China se aproveitou da globalização promovida pelo ocidente, intensificada após a queda do muro de Berlim, para se tornar o principal centro industrial do planeta e um gigante exportador, alcançando o posto de segunda maior economia do mundo. Atualmente, Pequim ajusta seu modelo para promover o incentivo ao consumo interno e ao aumento das taxas de natalidade. Porém, trata-se de um grande desafio pois envolve a mudança cultural de um povo acostumado a restrições de suas liberdades e a viver com pouco.
Ao mesmo tempo, aproveitando-se da política tarifária hostil do governo Trump para com o resto do mundo, a China busca ampliar acordos com Japão, Coreia do Sul, União Europeia e países do Sul Global. A estratégia é clara: reposicionar-se como hub tecnológico e comercial de uma nova ordem multipolar, enquanto o dólar perde fôlego e o euro e o yuan ganham terreno.
Sob a ótica dos Estados Unidos, é fato que o seu déficit orçamentário estratosférico (e com viés crescente) e o enfraquecimento do seu setor industrial devem ser motivo de preocupação para seus cidadãos e governo pois afeta a estabilidade de sua economia, compromete sua soberania e põe em risco a segurança de seu povo. Como os americanos compram mais do que vendem para a maioria dos países do mundo, o que agrava o seu déficit trilionário, o governo Trump decidiu buscar reequilibrar a balança comercial por meio da política tarifária anunciada no “Liberation Day”. Como a política industrial da China, pautada em incentivos estatais à exportação e restrições não-tarifárias, corrompe o livre comércio e impõe desvantagens competitivas aos demais países, a preocupação do governo americano com o modelo chinês é legítima.
A negociação diplomática de tarifas alfandegárias é salutar pois pode reduzir o custo dos produtos e serviços, beneficiando os povos dos países que realizam comércio entre si. Entretanto, a forma como tal problema vem sendo tratado pelo governo Trump é que tem causado instabilidade aparentemente desnecessária.
Toda a instabilidade geopolítica que surgiu desde que Trump iniciou seu segundo mandato e resolveu endereçar a correção do desequilíbrio comercial existente entre EUA e os demais países, especialmente a China, pode ser o estopim para o acirramento dos ânimos entre nações. As movimentações geopolíticas que se desenrolam na Europa e no Oriente Médio não podem ser desprezadas. Desde 2014, a Rússia avança sobre a Ucrânia (Tomada da Crimeia), em resposta à ampliação e aproximação geográfica da OTAN. Há décadas, os conflitos entre Israel e os países de seu entorno assombram os povos daquela região. Hoje, temos guerra militar em curso nessas duas regiões: Rússia contra Ucrânia e Irã contra Israel. Além disso, há uma crescente tensão no sudeste asiático frente ao interesse da China sobre o território de Taiwan, o que leva à seguinte dúvida crucial: se a China invadir Taiwan, os EUA irão intervir? Durante a campanha, Trump já havia se esquivado quando perguntado se defenderia Taiwan[13].
Importante lembrar que a Segunda Grande Guerra se tornou mundial quando os EUA foram arrastados para o conflito após o ataque japonês a Pearl Harbor. Até aquele momento, ocorriam três guerras regionais: a Alemanha tomando seus vizinhos na Europa; a Itália atacando a Etiópia; e o Japão invadindo a China. O contexto atual dos confrontos militares se apresenta, inclusive, com a distribuição de forças ainda mais bem definidas. De um lado, China, Rússia, Irã, Coreia do Norte e Venezuela demonstram cooperação mútua. Do outro, os países democráticos se estranham diante de declarações hostis e de medidas tarifárias do atual governo Trump que, sob o mantra político “America First”, parece menosprezar os riscos de uma terceira grande guerra.
Caso a China invada Taiwan e os Estados Unidos decidam não intervir, como Japão e Coréia do Sul irão encarar tal postura do país líder militar do ocidente que prometeu defender seus aliados contra invasão inimiga? Seria razoável presumir que ambos decidam construir bombas nucleares para se defenderem, respectivamente, da China e da Coreia do Norte. No mesmo sentido, não seria de se estranhar se países Europeus vizinhos da Rússia, especialmente Alemanha e Polônia, decidissem também ter suas próprias bombas nucleares. E no Oriente Médio, Irã já vem enriquecendo urânio a 60%[14], bem próximo aos 90% necessários para possibilitar o desenvolvimento de ogivas nucleares. Ao ver essa movimentação nuclear pelo mundo, o quão mais próximo de conseguir suas armas nucleares o Irã estará? E qual seria a reação da Arábia Saudita?
Definitivamente, a reação americana a uma eventual empreitada militar da China contra Taiwan seria determinante para estabelecer se teríamos um mundo mais ou menos seguro. Certa vez, Albert Einstein, ao ser perguntado sobre como seria uma possível terceira guerra mundial, respondeu que não saberia dizer, mas que, caso acontecesse, saberia que uma quarta grande guerra seria travada com pedras e paus, porque só esses objetos restariam à humanidade.
É legítimo que Trump queira conter a escalada da dívida americana e que, para isso, promova corte de despesas internamente e diligencie para a melhora do saldo comercial americano frente aos demais países. O “Por quê” e o “O que” estão claros e justificam medidas governamentais em prol da América; o “como” é que se tornou o grande fator de preocupação pelo mundo. Embora Trump seja reconhecido como grande empresário e exímio negociador no campo dos negócios, muitos observadores estudiosos têm advertido para a sua aparente falta de habilidade no jogo geopolítico. E isso pode determinar qual rumo tomará o futuro da humanidade.
Conclusão: o fim do mundo como o conhecíamos (e o nascimento de outro)
A máquina global vem sendo reconfigurada. Os EUA ainda são uma potência colossal — militar, cultural e econômica — e, sob Trump, parecem dedicados a reaprender a operar num mundo sem monopólio da legitimidade. O dólar perde força. As cadeias produtivas se fragmentam. A influência simbólica dos EUA se deteriora. E os outros atores se mexem: Alemanha gasta como nunca, Índia escala sua indústria e a China investe em armamento militar, semicondutores e ampliação da influência pelo globo. Não vivemos um colapso repentino. Vivemos um reposicionamento global. O que emerge é uma ordem geoeconômica mais fluida, mais competitiva e mais imprevisível. E como nos ensinaram os grandes autores, potências não caem de uma vez. Elas cedem espaço, negociam relevância e aprendem, ou não, a cair de pé.
Enfim, será que estamos vivendo o que os manuais antigos chamariam de “fim de ciclo hegemônico”? Ainda que a resposta seja afirmativa, não se engane: não há data marcada, nem coro de trombetas. O declínio de uma superpotência vem como erosão — começa devagar, até que um dia a encosta cede.
Pode ser que a China consiga superar seus desafios internos, aumentar a renda per capita de seus 1,4 bilhão de cidadãos e se tornar a maior potência do mundo, passando a influenciar outros países a adotarem seu modelo econômico e político: grande poder concentrado no Estado — geralmente, autoritário ou totalitário — e menos liberdade aos indivíduos.
Pode ser que a “Trumpulência” consiga reverter o quadro de deterioração da Pax Americana e os EUA consigam se manter como a principal potência e modelo a continuar sendo seguido pelos países que desejam enriquecer e prosperar respeitando a propriedade privada e as liberdades individuais de seus cidadãos.
Ou pode ser que o século XXI não tenha um dono claro, mas, talvez, um condomínio instável de potências tentando equilibrar crescimento, segurança e legitimidade, e obrigando nações a decidirem a qual bloco de comércio e influência se aliarão, sob uma Guerra Fria 2.0.
Enquanto presenciamos muitos apostando no fim do excepcionalismo americano e outros dizendo que não é o fim mas apenas o pico de tal excepcionalismo, encerro esse artigo com a clássica frase de Warren Buffet — considerado um dos maiores investidores de todos os tempos —cujas opiniões, como diria Nassim Taleb, são emitidas com “skin in the game” (“pele em jogo”), a saber: Never bet against America (“Nunca aposte contra a América”).
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Artigo originalmente publicado pelo autor em seu blog dia 20 de abril de 2025: 𝗔 𝗘𝗥𝗔 𝗗𝗔 𝗧𝗥𝗔𝗠𝗣𝗨𝗟Ê𝗡𝗖𝗜𝗔: 𝗢 𝗠𝗨𝗡𝗗𝗢 𝗦𝗘𝗡𝗗𝗢 𝗥𝗘𝗢𝗥𝗚𝗔𝗡𝗜𝗭𝗔𝗗𝗢 𝗘𝗠 𝟮𝟬𝟮𝟱 – Por Guilherme Azevedo | Blog do Guilherme Azevedo
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[1] Ver em Leia todas as tarifas anunciadas por Trump no “Dia da Libertação”, consultado em 18/4/2025.
[2] Ver em Trump recua e reduz tarifas para 10% por 90 dias para todos os países, exceto a China | Mundo | cbn, consultado em 18/4/2025.
[3] Ver em Casa Branca divulga documento com tarifa de 245% para chineses, causa confusão e atualiza texto | Economia | G1, consultado em 17/4/2025.
[4] Ver em “Índice do medo” VIX dispara mais de 50% com intensificação da guerra comercial, consultado em 18/4/2025.
[5] A perspectiva de Marcos Troyjo foi condensada no presente artigo tendo por base a entrevista concedida ao podcast Market Makers que foi ao ar em 8/4/2025 e que pode ser acessada por meio do link COMO TRUMP PODE CAUSAR O PRÓXIMO COLAPSO GLOBAL? E O QUE MUDA NO MUNDO? | Market Makers #203.
[6] A perspectiva do Professor HOC foi organizada no presente artigo tendo por base o vídeo publicado em seu canal no Youtube em 15/4/2025 e que pode ser acessado por meio do link QUAL O PLANO DE TRUMP? | Professor HOC.
[7] A perspectiva de Gustavo Medeiros foi consolidada e trazida para o presente artigo com base na entrevista por ele concedido ao podcast Stock Pickers em 8/4/2025 e pode ser acessado por meio do link (1207) [AO VIVO] 🚨 COLAPSO SISTÊMICO GLOBAL: por que DONALD TRUMP está ROMPENDO O MUNDO? – YouTube.
[8] A perspectiva do empresário José Ricardo foi consubstanciada e registrada no presente artigo com base em sua entrevista ao podcast Os Economistas disponibilizada em 11/4/2025 e pode ser acessado por meio do link (1210) ESTADOS UNIDOS X CHINA – QUAIS SÃO AS VANTAGENS DA CHINA NA GUERRA COMERCIAL? | Os Economistas 165 – YouTube.
[9] Ver em China registra queixa na OMC contra tarifas dos EUA | CNN Brasil, consultado em 18/4/2025.
[10] Ver em China ordena que companhias aéreas suspendam compra de jatos da Boeing, diz Bloomberg, consultado em 18/4/2025.
[11] Ver em Donald Trump limita Nvidia de vender chips para a China | Jovem Pan, consultado em 18/4/2025.
[12] Ver em Por que decisão da China de restringir exportação de terras raras é duro golpe para EUA | Economia | G1, consultado em 18/4/2025.
[13] Ver em Donald Trump provoca polêmica sobre Taiwan, consultado em 18/4/2025.
[14] Ver em Irã produz em grande escala urânio de grau quase militar, consultado em 20/4/2025.